domingo, 22 de setembro de 2019

Lucro não é tudo: a sociedade exige um novo contrato social das empresas

Há dois tipos de capitalismo: o que gera valor para a sociedade e o que o espolia. Durante as últimas décadas, milhões de pessoas notaram que, apesar de terem trabalho, este é insuficiente para permitir uma vida digna; que o elevador social se desacelerou; que a desigualdade é imensa; que a cobiça parece o verbo mais conjugado pelas finanças, e que a crise climática poderia deixar um futuro abrasado de cinzas para seus filhos e netos. Se a promessa de um amanhã melhor, de uma vida melhor, que tem sido a base do capitalismo, se desvanece, o pensamento do homem entra em um círculo vicioso. Por que me sacrificar? Por onde seguir? Elizabeth Warren, a senadora democrata que quer chegar à Casa Branca, resume esta angústia: “As pessoas sentem que o sistema está arranjado contra elas. E sabe qual é a parte mais dolorosa? Elas têm razão”.

Onde estão as grandes empresas quando esta pena em cumprimento atravessa o planeta? Muitas estão brincando em seu jardim de recreio particular. “A cobiça corporativa está governando este país. E essa cobiça está destruindo os sonhos e as esperanças de milhões de norte-americanos”, criticava Bernie Sanders, outro dos candidatos democratas ao Salão Oval.

Em um mundo (até agora) de fronteiras gélidas, os problemas são jogos de espelhos entre as nações, e fica descoberto esse relato neoliberal de que a desregulação traria prosperidade a todos. Nos Estados Unidos, não por acaso, ao mesmo tempo em que o peso dos sindicatos decaía, os lucros empresariais, segundo a revista The Economist, passavam de 5% do PIB em 1989 para 8% atualmente.


Esses números procedem do dogma estabelecido em 1970 pelo economista Milton Friedman. O prêmio Nobel sustentava que o executivo-chefe, por ser um “empregado” dos acionistas, deve defender seus interesses, dando-lhes os maiores dividendos possíveis. Esta ideia, que fere como caminhar descalço sobre vidros quebrados, foi amplificada nas últimas décadas por escolas de negócios e executivos. O sistema métrico é o curto prazo, o sentido diário da companhia é um gráfico da Bolsa, e a cobiça, um cassino global. Friedman respondia assim numa entrevista: “Há alguma sociedade que você conheça que não se guie pela avareza? Você acha que a Rússia e a China não se guiam pela avareza? O que é a cobiça? Certamente, nenhum de nós é ambicioso, só o outro. O mundo se guia através de indivíduos que perseguem interesses diferentes”. Esta é a linha editorial que hoje continua escrevendo o destino de centenas de milhões de seres humanos.

Entretanto, as grandes empresas, sobretudo norte-americanas, sentiram que a mudança nos dias de hoje é trazida pela ira e pelo descontentamento, porque a sociedade exige companhias que melhorem suas vidas. Há algumas semanas, o Business Roundtable (BRT), um dos principais lobbies empresariais norte-americanos —que agrupa 181 grandes corporações como ExxonMobil, JPMorgan Chase, Apple e Walmart— lançou uma nota (que aliás não foi assinada por Blackstone, General Electric e Alcoa) em que redefinia o “propósito de uma empresa”. Os lucros dos acionistas passam a ser um objetivo a mais, e fala-se em “proteger o meio ambiente, fomentar a diversidade, a inclusão, a dignidade e o respeito”. O sentido, agora, é “criar valor para todos os grupos de interesse”. “Tudo isto terá como resultado um capitalismo mais sustentável e inclusivo”, afirma María Luisa Martínez Gistau, diretora de responsabilidade social corporativa do CaixaBank, da Espanha. O BRT só não explica como conseguirá tão bons propósitos.

Apesar de tudo, há esperança de que algo mude na CEOlândia. “É um sinal alentador. Mas só porque demonstra que os executivos-chefes entenderam a advertência: o pêndulo ameaça oscilar em direção contrária, e estão tentando controlar sua velocidade”, reflete Jeremy Lent, talvez um dos grandes pensadores de nossa era. Resta ver se a sociedade acredita na preocupação verde de uma petroleira como a Exxon ou do JPMorgan Chase, um banco que se tornou, segundo o BankTrack, uma rede de ONGs que vigia o comportamento financeiro, um dos maiores financiadores dos combustíveis fósseis do mundo, ao destinar mais de 196 bilhões de dólares (805 bilhões de reais) entre 2016 e 2018. “Porque a verdade é que o lobby não se compromete com nada extraordinário, apenas com o que deveria ser o comportamento básico de uma empresa”, critica Carlos Martín, diretor do Gabinete Econômico da central sindical espanhola Centrales Obreras. E acrescenta: “Os membros da BRT têm três características: são ambiciosos, querem deter o poder e são muito inteligentes. Viram o que se pode vir por aí com Sanders e Warren na esquerda do Partido Democrata e reagiram”. E as pesquisas lhes mostram que é um bom negócio mudar a forma de fazer negócios.
Confiança social

Pode ser, porque as corporações arrastaram a confiança social para a beira do precipício. Aí está o escândalo da Volkswagen, o comportamento do Facebook, a desonestidade do Wells Fargo e a atitude da Novartis. A farmacêutica acaba de apresentar um tratamento genético (Zolgensma) que poderia salvar crianças com atrofia muscular espinhal. Mas o preço, segundo o The New York Times, é de 2,1 milhões de dólares por paciente. Acredita-se que seja o medicamento mais caro da história. Nem sequer os gastos de pesquisa podem esconder a insensibilidade de uma empresa que recebe ajudas públicas. Estas são as empresas que guiarão o século XXI? Essa linha temporal é um pedestal manchado de vermelho. “O comunicado surge como uma resposta ao que se viveu nas últimas décadas. Os vícios do sistema econômico foram tais que os problemas de reputação ameaçam o próprio valor da companhia”, adverte Emilio Ontiveros, presidente da consultoria Analistas Financeiros Internacionais (AFI).

A sociedade ocidental sente que a democracia do acionista falhou. Existem vozes, é claro, que falam em outro registro e criticam alguns desses “vícios”. “Há rendimentos decrescentes despedindo as pessoas repetidamente”, reclama Jeff Ubben, fundador da firma ativista ValueAct Capital, na The Economist. “Não é a estratégia certa para o futuro”, acrescenta. Essas vozes, porém, são escassas, e o passado é outro país.

Logo após da divulgação da nota do Business Roundtable, outra associação, o Council of Institutional Investors —que representa muitas das companhias que estão no BRT e alguns dos maiores fundos de pensão dos EUA—, respondeu com contundência. “Responsabilização de todos significa responsabilização de ninguém. É o Governo, não as empresas, quem deve assumir a responsabilidade de definir e abordar os objetivos sociais com uma conexão limitada ou inexistente com o valor do acionista de longo prazo.”

As posições estão escritas em pedra. As empresas fogem, a declaração do BRT não deixa de ser palavras sobre um papel, a indústria do investimento se fecha no curto prazo, e qualquer CEO sabe que sem lucros será demitido. Então, o que fazer em um momento que exige redefinir o sentido das empresas? “Do meu ponto de vista”, diz Jeremy Lent, “as transformações que a nossa sociedade precisa só acontecerão quando os Governos forçarem as companhias a terem obrigatoriamente seus princípios sociais, ambientais e financeiros em seus estatutos”. Essa “afronta” ao cânone, que Elizabeth Warren também defende, tem resposta nas páginas conservadoras da economia. “As empresas não podem —e não devem— assumir responsabilidades sociais próprias do Estado, como educação, apoio ao bem-estar ou proteção ambiental. Além disso, a prática demonstra que as companhias são as instituições erradas para prestar assistência médica e apoio às pensões”, diz Martin Wolf, escritor e colunista do Financial Times.

Aqui a realidade se choca com esse Lego de vidro que é a natureza humana. “Propósito é o sabor do mês”, ironiza na The Economist Stephen Bainbridge, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). E pergunta: “Mas as empresas vão realmente impor um corte de 10% aos seus acionistas pelo bem dos grupos de interesse?”. E quando a empresa decidir que o lucro não é mais o seu principal objetivo, a quem prestará contas? Aos ativistas? Aos políticos? Questões não resolvidas, mas que revelam as dúvidas de um mundo em trânsito para outro tipo de sociedade.

Talvez este período esconda uma terceira via. Os ativos gerenciados sob critérios ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) na Europa, Canadá, Japão, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia cresceram de 22,9 para 30,7 trilhões de dólares (de 94,1 para 126,2 trilhões de reais) entre 2016 e o ano passado. “Se os executivos continuarem agindo em nome dos acionistas, mas estiverem cientes de que estão preocupados com questões sociais – o meio ambiente, por exemplo – assim como com os lucros, isso melhorará as coisas”, admite Oliver Hart, prêmio Nobel de Economia de 2016. “Se, pelo contrário, os gestores dirigem as empresas em função de seus próprios pontos de vista sobre questões sociais ou a importância dos grupos de interesse, isso poderia ser um passo na direção errada.”

Outra opção (já que a autorregulação nunca funcionou) seria criar uma estrutura que vigiasse e obrigasse os diretores a fazerem algo mais do que superalimentar os dividendos do acionista. Na última década, cerca de 3.000 empresas tiveram a classificação de B corporations. Isso significa que seu comportamento ético, social e ambiental foi certificado pela B-Lab, uma organização não governamental norte-americana. “A declaração do BRT é uma mostra de que a cultura empresarial mudou. Mas agora é hora de uma ação coletiva por meio da comunidade empresarial e dos políticos para trabalhar juntos e superar a primazia do acionista”, diz Andrew Kassoy, cofundador da B-Lab. O problema é que poucas grandes empresas assinaram esse protocolo, e a maioria é de marcas de consumo.

Apesar dos inúmeros pecados de muitas corporações, mudanças acontecem. Em 25 de agosto, cerca de trinta grandes companhias (Apple, Amazon, Unilever) deram o surpreendente passo de publicar uma página no suplemento dominical do The New York Times comprometendo-se a colocar o planeta à frente dos lucros. “É uma mudança que vem para ficar e surge de várias formas: a principal é que o contrato das empresas com a sociedade está sendo reformulado”, analisa Antoni Ballabriga, diretor global de Negócios Responsáveis do BBVA. E avança: “As empresas precisam se molhar mais e ver onde podem aportar maiores capacidades e gerar mudanças sistêmicas; precisamos passar das declarações para a ação”.

O executivo sabe o preço de decepcionar. O caso Villarejo —um escândalo de espionagem comercial envolvendo o BBVA na Espanha— teve impacto na reputação da sua instituição, que agora “enfrenta a necessidade de uma mudança radical em sua política de geração de lucro e, principalmente, de uma limpeza de imagem para aliviar os efeitos prejudiciais de sua imputação”, segundo Miguel Momobela, analista da corretora XTB. A colisão entre a ética e os lucros talvez seja o que o mundo precisa. Que ecloda a faísca, que o fogo se acenda; que escutem. “Dar rentabilidade aos acionistas é uma condição necessária para ter sucesso nos negócios no século XXI, mas não suficiente”, indica o economista José Carlos Diez, lembrando que “as empresas devem incorporar à sua estratégia cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e isso deve ser liderado pelo presidente e seu conselho de administração”.

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