sábado, 16 de julho de 2022

Bolsonaro quer a rota venezuelana

Qual é o projeto estratégico e de longo prazo do bolsonarismo? Responder a essa pergunta é decisivo para entender o sentido das próximas eleições. O caminho almejado por Bolsonaro é muito similar ao traçado na Venezuela chavista. É uma rota de destruição paulatina das instituições democráticas, substituindo-as por um modelo concomitantemente autocrático e populista, que reduz o controle independente sobre os governantes e mobiliza constantemente setores populares, inclusive por meio da violência, em apoio ao líder máximo. Não é possível saber se essa ideia vai vingar no Brasil, mas o atual presidente tentará, com todas as suas forças, alcançar esse objetivo.

À primeira vista, trata-se de uma grande ironia da história. Nas eleições de 2018 o bolsonarismo não cansou de dizer que o PT queria que o Brasil se transformasse na Venezuela. Aproveitava-se do fato de que os governos petistas tinham se imiscuído demais na política interna venezuelana, o que foi um erro enorme de política externa. Mas, observando mais atentamente a trajetória de Bolsonaro, desde aquela época já se percebia que ele tinha mais similaridades com Chávez do que qualquer outra liderança política.

Ambos têm origem militar e praticamente foram expulsos da instituição por seu personalismo golpista. Ideologicamente seguem um populismo autoritário no qual não há espaço para partidos nem para uma sociedade civil independente. Quando chegou ao governo, Bolsonaro aumentou ainda mais as similaridades em sua luta contra a Justiça e a imprensa, na campanha pelo armamento de seus aliados na sociedade e na política externa maniqueísta e isolacionista. Por fim, e mais importante: os dois optaram não pelo golpe clássico de Estado, mas sim por usar a democracia para jogar o povo contra as instituições - Chávez por meio de plebiscitos e Bolsonaro usando as redes sociais para insuflar uma revolta contra o sistema.



Evidentemente que haverá também dissonâncias entre essas duas figuras políticas, principalmente por conta da diferença de contextos. Bolsonaro tem uma ditadura militar prévia como base de suas ideias, ao passo que o chavismo criou o seu próprio modelo autocrático num país que tinha ficado imune da onda de regimes autoritários que assolaram a região entre as décadas de 1960 e 1980. Outras diferenças entre Brasil e Venezuela poderiam ser citadas, porém, o fato marcante é que ambos os líderes escolheram uma estratégia política similar de construir uma autocracia pela destruição e, ressalte-se, desmoralização paulatina do jogo democrático.

Embora admire muito Viktor Orbán, governante da Hungria, além de reverenciar Trump e Putin, o caminho bolsonarista é muito mais parecido com o do chavismo, por causa de peculiaridades sul-americanas e pelo perfil militar de seu líder. Assim, é possível listar cinco passos estratégicos desse modelo político.

O primeiro é o de construir o poder político com base numa lógica da violência. Há dois pilares aqui, o oficial e o informal, de modo a criar uma unidade (artificial) entre o Estado e o povo. No primeiro pilar está a conquista do apoio das Forças Armadas, tornando-as cúmplices do projeto, mas não comandantes dele, diferentemente do que ocorrera no Brasil no regime fundado em 1964.

Para conseguir isso, usa as benesses dos cargos e recursos públicos, o aumento do prestígio público - isso explica em boa medida a escolha do candidato a vice na chapa bolsonarista - e a criação ou reforço de um inimigo comum - no caso brasileiro, os “comunistas”, imaginariamente identificados como o PT. Bolsonaro e Chávez buscaram cooptar os militares para dizer que as armas são o árbitro final do conflito político, e não juízes ou qualquer ator civil.

A lógica da violência também está presente na campanha pelo armamento da população civil. Embora o discurso bolsonarista diga que todo cidadão pode e deve ter sua arma, o foco é o mesmo da Venezuela de Chávez: aumentar o poderio bélico de indivíduos (lobos solitários) e milícias favoráveis ao grande líder - ou mito. Neste caso, trata-se não só de somar o poderio estatal com o de grupos civis, mas também uma forma de seguro contra uma possível traição dos militares. O pensamento populista autoritário não confia completamente no Estado e precisa de seguidores extremistas e fanáticos para pressionar o poder formal.

O incentivo à ação direta e violenta de civis contra os inimigos é algo que Bolsonaro faz desde o início do seu mandato - como Chávez também o fizera. Neste sentido, os atentados políticos, como o de Foz de Iguaçu, uma tragédia terrível, não é a consequência mais grave. O pior pode vir não com lobos solitários, mas com milícias organizadas que sigam as ordens do líder máximo. Tais grupos provavelmente terão em suas camisas uma imagem do presidente fazendo a arminha com a mão.

A rota venezuelana vai além da lógica da violência e tem como segundo passo estratégico o enfraquecimento e a desmoralização dos controles democráticos dos governantes. Bolsonaro já conseguiu dominar completamente ou em boa medida algumas das instituições de fiscalização, como o Ministério Público Federal. Ainda não chegamos ao modelo autocrático chavista que hoje vigora sob a regência do presidente Maduro. Isso se deve principalmente a dois obstáculos: o controle judicial e o social.

No primeiro caso, a grande barreira à expansão do poder autocrático bolsonarista são o STF e o TSE. Não por acaso, o presidente brasileiro semanalmente mobiliza seu eleitorado pelas redes sociais contra os ministros da Suprema Corte. O objetivo é emparedá-los, para que não tomem nenhuma decisão que possa atrapalhar a reeleição ou adotem um comportamento neutro frente ao resultado eleitoral. Se houver reação dos juízes, há a ameaça de ações dos bolsonaristas ou das Forças Armadas contra o sistema eleitoral. Mesmo que não ocorra efetivamente, essa espada estará sobre a cabeça da cúpula do Judiciário brasileiro nos próximos meses.

Se conseguir vencer ou dar um golpe contra o sistema eleitoral, Bolsonaro vai repetir o modelo chavista: irá mudar o perfil majoritário dos ministros da Suprema Corte. Para construir um modelo autocrático populista, é preciso que não haja uma maioria de juízes independentes. Caso seja necessário, será mudado inclusive o tamanho do STF para gerar uma nova maioria.

O outro controle que é um obstáculo ao projeto estratégico do bolsonarismo é a sociedade civil independente. Tal como Chávez, desde o início do mandato há uma guerra aberta entre Bolsonaro e a imprensa. Para enfrentar isso, em parte apostou-se nas redes sociais, mas houve também uma cooptação, maior ou menor, de parte dos órgãos de comunicação. De todo modo, uma parcela importante da mídia não se curvou, e talvez a saída seja, pela ótica bolsonarista, formas mais severas de intervenção, que sempre aparecem como ameaças em discursos do próprio presidente da República. Além disso, há várias outras organizações sociais que são a maior barreira ao projeto autoritário populista, algumas inclusive com forte conexão internacional. Qualquer ação mais violenta nesse campo poderá gerar um enorme isolamento do país, com fortes impactos econômicos.

Dois outros passos estratégicos para a adoção do modelo chavista são criar uma nova Constituição e obter algum apoio externo para viabilizar a rota venezuelana. A revisão constitucional já aparece nas discussões dos grupos bolsonaristas do Telegram e de forma sub-reptícia nos próprios discursos do presidente. Afinal, o grande inimigo institucional do atual governo é o pacto social-democrata representado pela Constituição de 1988, que busca evitar a concentração de poderes.

Já o front externo é uma enorme preocupação dessa via populista autoritária, pois com certeza haverá pressões contra um golpe institucional no Brasil vindas da Europa e especialmente dos EUA, porque seria uma enorme derrota para a política externa americana ter uma segunda Venezuela no continente. Antecipando-se a isso, e percebendo uma possível mudança geopolítica no mundo, Bolsonaro já escolheu seu protetor: a Rússia de Putin. Já se ensaiam, inclusive, alguns discursos de cunho antiamericano.

Mas o passo decisivo é o de manter o poder presidencial a qualquer custo, usando os ensinamentos de Chávez. Há várias ações possíveis aqui: multiplicar o populismo eleitoral de maneira nunca vista, gerar uma enorme balbúrdia nas eleições (inclusive com atentados) e, no limite, usar algum tipo de golpismo para evitar a vitória da oposição. Bolsonaro não seguirá os manuais democráticos, e embora ele possa fracassar em suas ações, uma coisa precisa ser dita: o bolsonarismo só perde o controle do poder se houver um contra-ataque democrático.

O projeto de venezuelização do Brasil não são favas contadas. Ao contrário, muita coisa pode ser feita para evitá-lo, unindo partidos, juízes, militares, líderes da sociedade civil, a mídia, a comunidade internacional e o eleitorado mais pobre do país contra esse projeto autoritário populista de Bolsonaro. Contudo, é preciso mobilização desde já contra o golpismo, pois quem acredita que as instituições resolverão por inércia a situação política não entendeu o momento do país. Afinal, o que vem por aí será pior do que o atentado político de Foz do Iguaçu.

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