As empresas de planos, que preferem perder os clientes impossibilitados de pagar reajustes muito elevados, precisam assegurar suas taxas de retorno e demandarão mais isenções e deduções fiscais, alongamento eterno e renovado de dívidas, créditos e anistia de multas. Para tanto, necessitam recrutar e institucionalizar a militância de empresários e executivos favoráveis à redução dos preços pagos a profissionais e estabelecimentos de saúde, restrição de coberturas e formulação de estratégias de competição com o SUS. Fica caro criar e manter organizações pagas, em primeira e última instância, com recursos retirados dos contribuintes e clientes, que aderem aos contratos privados em busca de garantia de acesso e utilização de serviços. É dinheiro jogado nos altos salários e comissões de intermediadores de transações e no ralo da corrupção.
A existência de uma possível rota da “arrecadação de propina” envolvendo empresas de planos de saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar está inteiramente legível no documento de colaboração premiada de Delcídio do Amaral com o Ministério Público Federal. No anexo 28, página 107, lê-se: “especial atenção deve ser dada à ANS e Anvisa, cujas diretorias foram indicadas pelo PMDB do Senado, principalmente pelos senadores Eunício Oliveira, Renan Calheiros e Romero Jucá. Jogaram pesado com o governo para emplacarem os principais dirigentes dessas agências. Com a decadência dos empreiteiros, as empresas de planos de saúde e laboratórios se tornaram os principais alvos de propina para os políticos e executivos do governo.”
Desde que Antonio Palocci foi preso, se ouve que o setor contrariou os limites acústicos da emissão de ruídos toleráveis pelas regras legais. O ex-ministro assessorou a maior empresa de planos de saúde do Brasil. Sua delação poderá expor as engrenagens de grandes negociações de compra e venda de empresas, inclusive internacionais.
Mas a proximidade do perigo, ao contrário de estimular cautela, impulsionou a celeridade das novas indicações para a ANS e da tramitação de medidas sobre redução do pagamento de impostos. A recondução de uma diretora, já sabatinada pelo Senado, e o registro pela Casa Civil de nomes para outros cargos foram realizados em tempo recorde. A Presidência da República e o Ministério da Fazenda apoiaram a recusa das empresas de planos a pagarem o ISS de acordo com o local de prestação do serviço. A demanda empresarial só não foi plenamente acolhida porque as bases políticas municipais se insurgiram contra a perspectiva de não arrecadação de cerca de R$ 6 bilhões. Por um triz, as empresas não emplacaram a habitual e bem-sucedida dobradinha: reajuste estratosférico das mensalidades e não pagamento de impostos. Desta feita, o argumento exposto no veto do presidente Temer não teve audiência. O som da afirmação de que o pagamento do tributo iria encarecer os planos foi abafado pelo barulho causado pela autorização de um índice para o reajuste das mensalidades incompatível com a realidade econômica do país.
Precisamos apurar nossa capacidade de audição e leitura para discriminar causas subjacentes e condições que precipitam problemas. Se os pacientes morrem de infarto, mas são fumantes, é necessário ampliar o espectro de ações preventivas e curativas. Analogamente, a resposta à pergunta sobre por que o SUS não se tornou universal e de qualidade não é a mesma que se seria dada a indagação de por que as empresas de planos passaram a ditar as políticas públicas de saúde. Os princípios básicos de responsabilidade e solidariedade dissociam contribuições sociais das recompensas individuais. Por isso, o Brasil tem SUS.
Consequentemente, a conjugação da racionalidade econômica com democracia política requer a revisão da proteção estatal indevida a agentes que anunciam orgulhosamente integrar o mercado. Entidades empresariais da saúde que assinaram manifestos exigindo mudanças políticas deveriam, de livre e espontânea vontade, se adiantar à Lava-Jato e adotar o saudável hábito de tomar uma chuveirada cívica diária.
Ligia Bahia
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