Primeiro porque, em dissonância com a culpa ou a vergonha, o medo se alimenta em demasia do inesperado e da imprevisibilidade. Isto gera perda de coesão social, de capacidade de planejamento e de bem-estar coletivo. Segundo, ao contrário da bravura e da coragem, caldos de cultura das boas ações cívicas nos contos de Homero, o medo não é proativo. É apenas reativo. O medo é medroso.
Émile Durkheim nos ensinou que nenhum agrupamento humano subsiste de forma eficiente se baseado apenas no individualismo míope. Há necessidade de uma cola social. Esta cola tem por obrigação se sobrepor aos corporativismos sectários. Fato difícil. Deve unir a todos em torno de algum sentimento comum.
Vinte e quatro séculos antes de Durkheim, Confúcio propunha à sociedade asiática a punição da não adesão à norma social através da vergonha. É conhecido o seu mandamento pelo qual, em adição às leis, deve-se conduzir pelo exemplo e pela honra. A alternativa à adesão estaria na vergonha e no exílio social. As práticas maoístas durante a Revolução Cultural exemplificam este processo.
A leitura diária dos jornais, entretanto, sugere que estamos distantes de nos beneficiarmos o necessário da restrição comportamental que advém da vergonha.
A cultura cristã, com o apoio intelectual de Santo Agostinho, institui, alternativamente, a punição pela culpa. É exemplo clássico de culpa cristã a visão de Teodósio, imperador de Roma, ajoelhando-se aos pés de Santo Ambrósio, bispo de Milão e tutor intelectual de Santo Agostinho.
Não tratamos aqui da culpa que deriva da consciência da não adesão à lei. A culpa à qual nos referimos é aquela inerente à formação civil, religiosa ou filosófica, que prescinde da norma legal.
A punição pela culpa tem a força de punir também a simples intenção. Isto lhe confere um papel inibidor da conduta antissocial potencialmente mais amplo que a vergonha. A vergonha pune apenas um subconjunto do que pune a culpa cristã.
Um terceiro elemento inibidor de individualismos exacerbados é o medo. É conhecida a frase de um florentino que queria revelar ao povo do início do século XVI como pensava a nobreza da época, mas que talvez tenha passado à história de forma diversa da que pretendia: “Se tiveres que decidir entre controlar pelo amor ou pelo medo, escolha controlar pelo medo”.
Exemplos modernos da tentativa de controle pelo medo são Stalin no século XX e os terroristas no século XXI.
A sociedade brasileira, ao longo do tempo, dá a impressão de beneficiar-se menos e menos das restrições sociais derivadas da vergonha e da culpa. Um dos motivos para isto é que a forte heterogeneidade social tem sido capaz, em episódios importantes, de viabilizar confusões coletivas nas quais a má conduta é vendida e aceita como um heroísmo à Robin Hood.
A restrição comportamental pelo medo, por outro lado, é clara nas comunidades carentes, onde o Estado se faz total ou parcialmente ausente. Nestas, a posse de arma é a posse da palavra, a gênese do medo e o exercício da lei.
No asfalto, impera cada vez mais o medo hobbesiano da guerra de todos contra todos, individualmente frustrante e socialmente vexante.
Às vezes, é preciso a uma sociedade reaprender os ensinamentos constituídos através de milênios. De Abraão a Confúcio, há inúmeras culturas das quais se podem derivar âncoras de civilidade e harmonia. Não se trata necessariamente de opção religiosa. Mas da necessidade de retomar o bom senso coletivo.
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