As manifestações foram realizadas com a angústia do dilema se era oportuno, em pleno crescimento do coronavírus, sair às ruas. Algo que acabou dividindo aqueles que neste momento tentam se unir em uma ampla frente de consenso democrático contra a barbárie que assombra o país.
Os seguidores fanáticos do presidente Bolsonaro e os que lutam por um Brasil livre de ameaças de golpes autoritários foram aconselhados a não participar dessas manifestações. Aparentemente, as hostes de Bolsonaro foram mais obedientes, ou tiveram mais medo, ou talvez estejam começando a ser menos do que se alardeia, porque apenas um punhado de gente saiu às ruas. Por outro lado, aqueles que começam a se unir em um clamor cada vez maior contra o desmanche da democracia ameaçada a cada hora e às vezes até de maneira grosseira, preferiram enfrentar o perigo e sair em defesa das liberdades ameaçadas.
As jovens Julia e Simone explicaram com lucidez, afirmando que têm mais medo do racismo do que do coronavírus, porque a ameaça do coronavírus é algo cuja solução está sendo buscada, ninguém nega sua nocividade, enquanto o caso do racismo é algo velado que acaba sendo aceito como algo normal ou no máximo uma fatalidade, como acontece no Brasil desde a escravidão até hoje.
Não foi por acaso que nas manifestações no Brasil as televisões misturaram imagens locais com as manifestações ainda em andamento contra o racismo nos Estados Unidos e em todo o mundo, que serviram como estímulo para perder o medo de sair às ruas aqui também.
E talvez uma das coisas mais importantes sobre as manifestações brasileiras tenha sido o fato de aparecerem como o início de um movimento pela libertação dos demônios que atormentam a sociedade na qual, neste momento, se dão um abraço mortal três crises igualmente cruciais: a da pandemia, uma das mais graves do mundo, a política com ameaças diárias à democracia e desprezo pela população negra. Uma população que, além de ser maioria no Brasil, é cada vez mais marginalizada e assassinada em um verdadeiro genocídio à luz do sol. Finalmente, e concomitantemente, a econômica, que ameaça criar novos guetos de brasileiros que serão forçados a voltar ao inferno da miséria que nunca é apenas material, mas também cultural e social, e que são vistos como aqueles que não têm direito à vida.
O simbolismo cruel e cínico do presidente Bolsonaro bebendo um copo de leite em público enquanto ardiam nos Estados Unidos as manifestações de protesto contra o assassinato de um homem negro por um policial branco, algo que acabou comovendo todo o mundo civilizado, indica que o Brasil, cujo país é cada vez mais visto no mundo como pária, também está perdendo o relógio da história.
As manifestações de protesto, em plena pandemia, realizadas ontem no Brasil, podem ter sido o pavio de um incêndio de tomada de consciência da gravidade do momento. E é importante que tenham sido principalmente os jovens, inclusive do mundo do futebol e do esporte, os que venceram o medo e saíram às ruas para dizer BASTA à barbárie exibida por um Governo e um chefe de Estado que ameaçam matar seu futuro.
Como as jovens Julia e Simone disseram ontem durante a manifestação em São Paulo, “se não for agora, quando? Temos que lutar porque este é um Governo de opressão”. A coragem destas jovens aparece como um sonho de libertação que começa a surgir no meio da tempestade que ameaça e humilha um país da importância do Brasil. Serão estes jovens que um dia poderão contar aos filhos que lutaram e enfrentaram os monstros do novo autoritarismo destrutivo para devolver-lhes os valores ameaçados da liberdade.
Sim, as jovens Julia e Simone têm razão: “Se não for agora, quando?”. Porque amanhã pode ser tarde demais. Alguém se lembra da história do nazismo? Também naquela época a racionalidade chegou tarde demais. E o holocausto já estava consumado.
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