No dia seguinte, ao abrir seu email, levou um susto ao ver a resposta do Governo brasileiro. O texto tinha sido devolvido com vetos a termos que, pelos últimos 25 anos, eram considerados como consensos internacionais e assinados até mesmo pelo Brasil.
Expressões como “igualdade de gênero”, direitos sexuais e reprodutivos e várias outras frases foram literalmente riscadas e substituídas por termos escolhidos para deixar claro uma visão de mundo em que direitos eram limitados, e não ampliados.
A diplomata estrangeira, surpreendida, apenas respondeu que aqueles termos originalmente colocados no texto não seriam modificados e, lamentando, notava que a postura da tradicional diplomacia brasileira sofria uma transformação inédita.
Nos bastidores da política externa, o Brasil de Jair Bolsonaro dava uma claro sinal de que o posicionamento baseado em orientações religiosas, de restrições ou ultraconservadoras não se limitaria à retórica. Nas salas de negociação, nos corredores e trocas de telegramas, a guinada passara a ser uma realidade. E, com ela, novas alianças improváveis, sempre com governos marcados por posições polêmicas.
Nas semanas que se seguiram ao email entre o Brasil e o governo latino-americano, o que as delegações estrangeiras ocidentais descobriram era um novo país, distante daquele que havia liderado um movimento progressista desde o final dos anos 90 no campo dos direitos humanos.
Nas fichas de votações publicadas ao final de cada resolução, o nome do Brasil já não acompanhava a Europa ou mesmo a América Latina. Mas sim algumas das ditaduras mais cruéis do mundo. Ali, o grupo de Bolsonaro e príncipes árabes encontraram um ponto em comum: a suposta defesa da família e valores.
Assim, o Brasil apoiaria propostas da Organização de Cooperação Islâmica para excluir educação sexual de textos da ONU, criticaria o uso do termo gênero, e até passou a concordar com sauditas sobre a necessidade de se manter em resoluções uma referência explícita à defesa do papel dos pais em casos em que se combatia o casamento forçado de meninas, muitas vezes patrocinados pelos próprios pais.
À medida que abandonavam suas tradicionais posições de ampliação de direitos, delegados brasileiros começaram a ser procurados por grupos do lobby anti-gay, que passaram a se sentir confortáveis em trocar impressões com a nova administração brasileira. Eventos com a presença do Brasil ainda foram patrocinados por ongs ultraconservadoras para falar da perseguição que cristãos estariam sofrendo.
Dias depois, o Itamaraty resistiria à ideia de que a ONU promovesse um maior espaço para que grupos indígenas pudessem se expressar e tomar posição, uma proposta apoiada por escandinavos e vários governos latino-americanos.
O Brasil ainda não apoiaria uma resolução amplamente patrocinada pelo Ocidente solicitando que a ONU iniciasse investigações sobre a campanha de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, contra a suposta criminalidade. Em três anos, foram mais de 27.000 mortos, além de propostas como a redução da idade penal para apenas nove anos de idade.
Meses antes, o governo Bolsonaro havia abandonado sua tradição e votado em resoluções que condenam as violações de direitos humanos por parte de Israel.
Em todas as votações de emendas e mesmo no caso das Filipinas, o Brasil se aliou ao lado derrotado. Nenhuma das emendas foi aprovada e Duterte será investigado. Para completar, o governo de Jair Bolsonaro passou a receber cartas de protesto da ONU, denúncias e cobranças em relação a diversas políticas públicas de sua gestão.
Eleição?
Mas é exatamente neste contexto que o Brasil se apresentará à eleição para mais um mandato de três anos no Conselho de Direitos Humanos da ONU. A votação ocorre em outubro e a verdade é que dificilmente Bolsonaro será derrotado. Afinal, são oferecidas duas vagas para a América Latina e apenas dois candidatos se apresentaram: Brasil e, ironicamente, a Venezuela. Um espelho de uma região dividida e sem direção, para nenhum dos lados.
Para ser eleito, basta o país ter 97 dos 194 países da Assembleia Geral. Mas o teste será outro. Nas urnas, o Governo Bolsonaro vai descobrir até que ponto é aceito pela comunidade internacional e, no fundo, a votação se transformará em uma espécie de termômetro da popularidade do país.
Ao longo dos últimos anos, o Brasil viu de fato essa popularidade despencar. Depois de acumular 175 voto em 2008 e 184 em 2012, o governo brasileiro viu o apoio internacional cair na gestão de Michel Temer. Visto com hesitação, o Itamaraty perdeu quase 50 votos e, na eleição de 2016, ficou com apenas 137 apoios.
Para a campanha de 2019, o programa brasileiro tem uma linha clara: a delimitação de direitos, e não sua expansão.
Em seu programa apresentado aos demais governos, o centro das propostas brasileiras é a proteção à família, entendida apenas como aquela composta entre um homem e uma mulher.
Entre suas prioridades, nenhuma referência foi feita ao combate à tortura, ao direito à verdade, a processos de reconciliação, à garantia de direitos para imigrantes ou à educação. Em toda a campanha brasileira, a menção ao combate à homofobia ou direitos de LGBTs foi simplesmente omitida.
Bolsonaro, assim, caminha para a eleição em outubro em Nova Iorque fazendo acenos não a uma expansão de direitos. Mas a governos que, abertamente, buscam ampliar o número de aliados dentro do Conselho da ONU para enfraquecer uma tendência de abrir novas fronteiras nos direitos fundamentais no mundo.
Assim, quando os sauditas, egípcios e paquistaneses derem seu voto por Bolsonaro, não estarão aplaudindo os avanços na proteção à vida no Brasil. Mas sim considerando que terão, a seu lado, mais um governo hostil a investigações internacionais, a homossexuais e às eventuais violações ao caracter sacro da soberania.
Quando Duterte der seu voto ao Brasil, não estará apostando em uma nova forma de lidar com as drogas e nem uma visão mais humana do combate ao crime. Mas por ter tido, em Bolsonaro, um aliado contra a ingerência da ONU em assuntos domésticos.
Quando poloneses e húngaros derem seu voto ao Brasil, não será por sua abertura de fronteiras. Mas por sua recusa em assinar pactos de migração, assim como fizeram os governos do leste-europeu.
Quando o Itamaraty se apresentar para a eleição na ONU, portanto, sua bandeira não será a da expansão de direitos. Mas justamente a de impedir que as fronteiras das liberdades fundamentais sejam cada vez mais amplas.
Poderia parecer uma contradição o Brasil de Bolsonaro se candidatar ao Conselho de Direitos Humanos. Mas não o é, especialmente se o objetivo for o de formar uma aliança contra qualquer ideia de direitos internacionais que se sobreponham à soberania.
Minando esses direitos por dentro, o Brasil se alia a outros governos que, de forma hipócrita, usam as tribunas internacionais para desmontar um sistema criado há 70 anos e que serve de bússola moral ao mundo.
Entre as delegações ocidentais, o dia de votação promete ser um momento amargo: os diplomatas estarão entre dar seu voto a Bolsonaro ou a Nicolas Maduro, reconhecido pela própria ONU como violador de direitos humanos.
Mas, nos corredores da entidade, não faltam ironias diante da situação constrangedora. “Tem horas que dá uma enorme vontade de votar pela Venezuela”, debocha uma diplomata europeia.
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