Bem aventurados os aleijados porque não distinguem as proporções dos
sentimentos morais e desenham triângulos tortos na areia.
Bem-aventurados os cegos de nascença porque rangem quando rangem
nas curvas os astros do cosmos sem música.
Bem-aventuradas as mulheres feias porque trocam sinais com a Via-Láctea
e são tangíveis a todas as semáforas.
Bem-aventurados os que morrem nas catástrofes ferroviárias porque a vida
foi de repente a sinistra aventura.
Bem-aventurados os desequilibrados líricos porque inventam tristes
gnomonias.
Bem-aventurados os que perdem os filhos porque, incendiados, são hábeis
em distinguir a estrela do naufrágio.
Bem-aventurados os mendigos porque pertencem às searas mitológicas.
Bem-aventurados os suicidas porque chegam de armas na mão ao outro
lado.
Bem-aventurados os indigentes porque resumem as misérias da poesia.
Bem-aventurados os bêbados sem remédio porque se extinguem no
crepúsculo como o carvão.
Bem-aventurado o que alimenta um mal secreto porque pode telefonar à
hiena e convidá-la para jantar.
Bem-aventurado o indivíduo que tem o rosto deformado porque pode
olhar a morte nos olhos e interrogá-la.
Bem-aventurados enfim todos os homens, todas as mulheres, todos os
bichos, bem-aventurados o fogo e a água, bem-aventuradas
as pedras e as relvas, bem-aventurados o Deus que cria o universo
e o demônio que o perdoa.
Paulo Mendes Campos
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