sexta-feira, 16 de abril de 2021

Josué de Castro, a fome e a política

A pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, realizada pelo grupo Alimento Para Justiça, da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília, apontou para o fato de que até o final do ano passado 59,4% dos brasileiros enfrentavam algum grau de insegurança alimentar.

Isso significa dizer que a pandemia do coronavírus mergulhou o país em uma catástrofe humanitária em que aproximadamente 125,6 milhões de brasileiros não têm o que comer, não comem adequadamente ou convivem diariamente com o medo de não conseguir fazer a próxima refeição.


A fome não é um problema inédito no Brasil. Tanto é assim que foi questão central de importantes obras da cultura brasileira. Lembremos de Fabiano e seus filhos vagando pelo sertão em “Vidas Secas”. Ou das andanças de Chico Bento em “O Quinze”, de Rachel de Queiroz. Na mesma trilha, a pintura “Os Retirantes”, de Cândido Portinari, retrata a tentativa de fuga da seca, da fome e da miséria. “Ilha das Flores”, documentário de Jorge Furtado, nos apresenta a profunda sombra de indignidade que a fome projeta sobre os seres humanos.

Para além de seu valor estético, as obras acima nos fazem sentir que a fome não é um acaso e tampouco resulta de determinações biológicas ou geográficas; a fome é o resultado de escolhas políticas. No fim das contas são as decisões sobre a organização da sociedade que definem quem terá ou não um prato de comida.

Os regimes de propriedade privada, as formas de organização do trabalho, o sistema de produção e distribuição de alimentos e suas conexões com a lógica de reprodução do capitalismo em níveis global e local são determinantes para a compreensão da fome como um fenômeno sociopolítico.

Todavia, uma análise científica da fome só pode se pretender completa com a menção à obra de Josué de Castro. Médico, geógrafo, nutrólogo, professor, cientista social, diplomata e político, foi o maior estudioso do tema da fome que o mundo conheceu.

É mérito deste brasileiro, nascido no Recife, o tratamento da fome “como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais”. Jean Ziegler, relator para a ONU sobre o direito à alimentação entre 2000 e 2008, afirmou que Josué de Castro deveria “ter um monumento em cada cidade do país, porque é um dos maiores pensadores do século 20”.

Dos vários escritos de Josué de Castro, destacam-se “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”. Nestes livros, a fome é tratada como um problema decorrente das contradições da organização econômica capitalista em seus diferentes estágios de desenvolvimento e formações histórico-espaciais.

No caso específico do Brasil, a monocultura —que gera a deficiência alimentar— e o latifúndio —que produz a fome— são centrais na criação das condições que levam as populações à tragédia da fome. Para Josué de Castro o enfrentamento da fome é, antes de tudo, a luta contra o subdesenvolvimento. Na sua visão, seria preciso libertar a agricultura dos freios do colonialismo e, assim, “libertar o povo das marcas infamantes da fome”.

Considerando-se o Brasil atual, o pagamento de um valor decente de auxílio emergencial, a implementação de políticas de apoio a micro, pequenos e médios empresários, assim como a adoção de medidas de controle da pandemia seriam cruciais para o enfrentamento da fome. Mas não é só isso: seria preciso uma mudança significativa nas estruturas econômica e política do país.

Tais mudanças incluem o fortalecimento da soberania nacional, a realização da reforma agrária, a priorização do povo brasileiro nas políticas alimentares, o investimento em ciência e tecnologia, a implementação de medidas de preservação ambiental e a insubmissão da produção de alimentos à lógica da mercadoria.

Em “Geografia da Fome”, Josué de Castro afirma que o Brasil seria capaz de superar suas históricas mazelas se pudesse livrar-se “da servidão às forças econômicas externas que durante anos procuraram entorpecer o nosso progresso social e da servidão interna à fome e à miséria que entravaram sempre o crescimento de nossa riqueza”.

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