O bom senso quer refutar a possibilidade: é claro que Bolsonaro não é Jânio. De fato. Alguém consegue imaginar um presidente incapaz de ler um TelePrompTer construindo uma frase similar à célebre “se sólido fosse, comê-lo-ia”?
Embora curioso, parece o típico caso de coincidência que fala mais sobre nossa percepção coletiva do que sobre a situação concreta (se é que em política se pode separar as duas coisas com precisão). Em meio a uma crise econômica duradoura e uma crise política e institucional profunda, somos levados a um estado de superinterpretação, de hiperexcitação semiótica: ao sinal de qualquer fiapo de sentido, é melhor já ir tirando as conclusões. Trata-se de uma forma, entre outras, de reagir a um cenário de instabilidade e imprevisibilidade, procurando no passado algo que nos ajude a enfrentar o futuro.
Vejamos com mais calma. No geral, parece que o cenário “BolsoJânio” encontra respaldo, sim. Senão nos detalhes pontuais, como a localização do vice, ao menos no processo como um todo. Basta lembrar, por exemplo, que durante a eleição se falava no ânimo populista da campanha de Bolsonaro, muito similar ao de Collor em 1989 e ao de Jânio em 1960, todos eles turbinados por um discurso anticorrupção. (Nessa leitura, as diferenças são tão eloquentes quanto as semelhanças: o símbolo eleitoral de Jânio eram as vassourinhas; o de Bolsonaro, pistolas. Os últimos 60 anos do Brasil estão aí condensados.)
O início do mandato de Bolsonaro só fortaleceu a comparação com Jânio. Um governo errático, com decisões de apelo a uma base moralista alternadas com medidas estapafúrdias, num cenário de instabilidade econômica, desavenças explícitas com o vice-presidente e, principalmente, choque constante com o Congresso — tudo isso levando a uma deterioração política em questão de meses. Soa familiar? Em sua coluna na Folha , Celso Rocha de Barros levou o paralelo a suas últimas consequências, destacando o lado obscuro da comparação: mais que apelo ao povo brasileiro, “a renúncia de Jânio foi uma tentativa de golpe”. O sociólogo alertou que é mais grave o caso de Bolsonaro, cuja base fala em fechar o Congresso e o STF — um flerte claríssimo com um golpe de Estado e com o autoritarismo.
Até o momento, portanto, a comparação segue válida. Resta nos preparar para o que vem por aí. Talvez ajude lembrarmos um episódio narrado por Fernando Sabino em sua autobiografia literária, O tabuleiro de damas . Está no capítulo 22, “Terra de cego”.
Quadros voltara havia pouco da Europa, para onde fora depois da renúncia. Foi o segundo encontro com Jânio a que Sabino compareceu. No primeiro, em Belo Horizonte, o ex-presidente tinha insistido em perguntar aos jornalistas e escritores que o receberam se o Brasil vivia uma situação pré-revolucionária. Havia então muita expectativa para o pronunciamento de Jânio ao povo, mas foi em vão: ele “fez um discursinho chocho”, escreve Sabino, “até a luz faltou no meio do programa.”
No segundo encontro, em São Paulo, numa reunião que incluía Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Paulo Emílio Salles Gomes, Jânio se viu encurralado por Darwin Brandão. Foi-lhe cobrada, duramente, uma explicação sobre sua renúncia; a verdade, sem conversa fiada. Não houve resposta satisfatória, e Jânio, depois de Brandão ter ido embora, deixou escapar:
– Os que se açulam contra mim são os mesmos que viviam me lambendo os calcanhares! Ninguém falava comigo nesse tom. Eu era um reizinho!
Cercado pela corte de seus filhos, tendo consigo sua casta de superministros, escorado numa eminência parda e tabagista na Virgínia, Bolsonaro talvez esteja se sentindo um reizinho neste momento. O texto estranho que compartilhou tem todos os sinais de um chilique, quando Bolsonaro se deu conta de que não é intocável, que está muito longe de qualquer nobreza: seu filho Flávio está sendo investigado pela ligação com o motorista Fabrício Queiroz; o Congresso não aprova bovinamente as medidas da Presidência; os protestos pela Educação mostram que o descontentamento com o governo não é exclusividade da esquerda.
Imagino uma cena meio shakespeariana, com o espectro de Jânio Quadros visitando Bolsonaro, tentando fazê-lo entender que os reizinhos, mais cedo ou mais tarde, sempre caem. Nos livros de história, eles acabam como um subtítulo, uma passagem, um detalhe; tornam-se notas de rodapé que mal explicam sua época, em muito ultrapassados por ela.
Mas não é de Hamlet nem de Macbeth que se trata aqui; Shakespeare não combina com o tom da nossa política farsesca. Isto é Brasil, terra do Chacrinha e da pornochanchada. O diálogo entre Jânio Quadros e Jair Bolsonaro não se daria em solilóquios. No máximo, teria frases como:
– Jânio & Jair não parece nome de dupla sertaneja?
Nenhum comentário:
Postar um comentário