As críticas e os panelaços não tardaram. Infelizmente, a polêmica em relação a postura do presidente tira o foco de um problema muito maior: a falta de estratégias e de decisões cruciais para enfrentar a crise é uma receita segura para uma catástrofe de dimensões incalculáveis. Enquanto o fla-flu nas redes sociais corre solto, o país continua tendo na prática e não somente no discurso uma das mais fracas e lentas reações à pandemia de todo planeta. Se trata de uma política de Estado que freou e continua freando ações essenciais na fase inicial do combate ao contágio com o coronavírus e que poderá resultar no colapso simultâneo do SUS, da atividade econômica e da coesão social.
Enquanto debatemos se é mais importante focarmos nos aspectos de saúde pública ou na crise econômica, uma discussão outrora completamente irracional, já que nunca haverá como salvar a economia de um país com milhares de cadáveres espalhados pelas ruas, outros países vêm adotando medidas enérgicas para limitar a extensão geográfica do contágio e conter o crescimento do número de casos em três linhas essenciais de atuação: o controle do fluxo de movimento das pessoas, o rastreio e o estrito isolamento dos casos potenciais, e a testagem maciça das comunidades mais afetadas. China, Cingapura, Coreia do Sul e Hong Kong demonstraram que uma estratégia de prevenção amparada nesses 3 eixos pode conter a epidemia em menos de três meses. Infelizmente, o Brasil não prestou suficiente atenção.
Enquanto países vizinhos muito menos afetados pela pandemia como Argentina, Peru e Colômbia seguem o exemplo asiático e tomam medidas drásticas para impor toque de recolher, fechar fronteiras e paralisar os transportes, milhares de passageiros oriundos de zonas de alto risco transitam diariamente pelos aeroportos brasileiros sem qualquer tipo de fiscalização. Parece surreal, mas estados como Ceará, Maranhão e Bahia, que tentaram pelo menos medir a temperatura dos passageiros no ponto de chegada, foram acionados na Justiça pela ANVISA, que conseguiu barrar os procedimentos. No Brasil, a agência cuja missão é liderar os esforços de contenção do contágio está se valendo das suas prerrogativas para fazer exatamente o oposto. Mesmo com mais de 100.000 casos confirmados nos EUA, o maior número do mundo, passageiros de Nova York estão pousando hoje em aeroportos pelo Brasil inteiro. Em quase qualquer outro país do mundo, esses passageiros ou já estariam barrados de viajar, ou estariam obrigados a permanecer por 14 dias em centros de quarentena do Estado, ou no mínimo seriam obrigados a permanecer em isolamento domiciliar durante esse período e multados caso desrespeitarem esse compromisso. No Brasil, eles estão sendo incentivados a saírem pelas ruas para movimentar o comércio. Como surpreender-nos então que o vírus se espalhou por todo o território nacional, já chegando até em aldeias indígenas?
Ao contrário das melhores práticas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e pelos especialistas dos sistemas de saúde que melhor lidaram com a crise até agora, o Ministério da Saúde não adotou medidas eficazes para assegurar ou pelo menos incentivar o rastreamento de pessoas que chegaram em contato com casos confirmados da Covid-19 (“contact tracing”). Mais que isso, por conta de escassez, o ministério vem recomendando a aplicação de testes somente em casos sintomáticos graves. Na prática, a falta do rastreamento de contato junto com a impossibilidade de testar portadores assintomáticos acelera a transmissão comunitária do vírus. Enquanto na Ásia aplicativos disponibilizados pelas autoridades de saúde pública permitem às pessoas descobrir em tempo real a identidade e a localização de pacientes confirmados que estiveram na sua proximidade, o Brasil não pode citar nenhum avanço nessa direção.
Outro aspecto muito problemático da gestão brasileira da Covid-19 até o momento é a questão dos testes. O Ministério da Saúde vem divulgando gráficos comparativos com a evolução da pandemia em países europeus e argumentando que a evolução do contágio vem sendo muito mais devagar que na Itália ou na Espanha. Mas como é possível acreditar em tal comparação sem qualquer tipo de transparência em relação ao número de testes que já foram realizados ou serão realizados no futuro? Desde o início da crise é notório que hospitais pelo país inteiro não conseguem testar todos os pacientes suspeitos de infecção, mesmo alguns em estado grave, por conta da falta de testes suficientes. Enquanto isso, a previsão de entrega de testes da Fiocruz feita pelo Ministério da Saúde contradiz os dados da própria Fiocruz. É absolutamente imperativo que a situação dos testes seja resolvida com celeridade para reduzir a subnotificação de casos. Ao contrário, as medidas de saúde pública adotada pelas autoridades podem estar norteadas por dados distorcidos.
Hoje, o debate público no Brasil deveria estar focado nessas questões. Também deveria estar focado na busca de uma estratégia para lidar com a queda abrupta da atividade econômica enquanto há um aumento galopante do número de casos. O isolamento de bairros, cidades, ou regiões do país onde a situação continua muito grave ou o isolamento vertical das pessoas mais sensíveis ao vírus poderão ser a nossa última opção caso o número de infecções continue aumentando depois de 3 ou 4 meses de isolamento horizontal. O cenário dramático enfrentado pela Itália, Espanha e os Estados Unidos deixa claro que o país precisa começar a se preparar para esse cenário sombrio e cheio de riscos, para evitar com que o fim do confinamento traga uma completa rendição frente ao poder destruidor da pandemia. Relaxar as medidas de quarentena sem um planejamento extremamente cauteloso, certamente incluindo os três eixos descritos acima, significaria uma abdicação do nosso dever moral de protegermos as vidas dos mais vulneráveis.
Igual ao resto do planeta, o Brasil está se arriscando num jogo perverso de roleta russa. A bala que já está no revólver é o vírus. Não podemos permitir que ele também seja carregado com as balas do despreparo, da ignorância, da desunião, da falta de foco. Seria uma morte segura.
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