Essa gente vive fora de tempo, como se estivesse ainda no Antigo Testamento, no tempo em que, na percepção dos hebreus, a justiça divina tinha um carácter tipicamente retributivo. Uma das coisas que se pode apreender no conjunto dos textos do cânon bíblico é que a revelação divina é progressiva.
De acordo com a perspectiva bíblica vivia-se então a idade infantil da revelação divina, isto é, o tempo em que aquele povo era tratado como uma criança a quem o pai impõe regras muito claras. Se obedecesse seria premiado, mas em caso de desobediência poderia esperar castigo. Quando a vida corria mal e começaram a sofrer derrotas e exílios, a justificação da desgraça sofrida apresentada pelos líderes e mais tarde pelos profetas hebreus, era sempre de que o Deus de Israel os tinha castigado duramente.
Só com a vinda do Messias Deus se revela de forma completamente diferente. No início do seu ministério público Jesus Cristo profere o célebre Sermão do Monte (Mateus, caps. 5-7), um discurso altamente subversivo, do ponto de vista social, cultural e religioso, uma vez que propunha valores diferentes e até opostos à prática religiosa judaica vigente, o que deixou a audiência desconcertada. Mas sobretudo Jesus de Nazaré vem a revelar o Pai como um Deus de proximidade e de intimidade, assim como o seu carácter e a sua essência fundamental, de que João Evangelista testifica: “Deus é amor” (I João 4:16).
Dizer que a presente pandemia é um castigo de Deus é uma enormidade sem nome. Afinal qual é o conceito de Deus que esta gente tem? Por que razão Deus castigaria tantos inocentes? Que raio de sentimento vingativo seria esse? Como diz Domingos Faria “o vírus é completamente insensível ao carácter moral das pessoas”. O Deus revelado em Jesus Cristo não é mesquinho nem reactivo, nem se deixa insultar por qualquer patetice humana. Os cristãos que difundem a imagem dum Deus mesquinho, afinal, não estarão a fazer mais do que os gregos e os romanos que inventaram deuses à sua própria imagem e semelhança, portadores dos vícios e fraquezas dos homens.
No fundo estão ainda na mesma posição infantil dos discípulos, que tentaram que o Mestre enviasse fogo do céu para castigar uns quantos, só porque tinham o orgulho ferido, por terem sido rejeitados pelos samaritanos: “E os seus discípulos, Tiago e João, vendo isto, disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?” (Lucas 9:54). Mas o Mestre repreendeu-os de imediato: “Voltando-se, porém, repreendeu-os, e disse: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las” (Lucas 9:55,56).
Como diz Jorge Pinheiro “Deus não castiga – Deus corrige, ensina e disciplina. E que ninguém veja nesta afirmação um jogo semântico. Porque os actos de Deus – como pessoa que é – revelam a Sua natureza. E a natureza de Deus é sempre pedagógica. E a pedagogia não se realiza por castigos mas por correcção, ensino e disciplina.” Haja alguém que diga a essa gente o mesmo que o Mestre Jesus.
Deus não precisa de pandemias para se fazer ouvir, nem de defensores (como pode a formiga defender o elefante?), que são tão pecadores como aqueles a quem apontam o dedo. A natureza do pecado é que será diferente. Precisam de se ver ao espelho, definitivamente.
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