quarta-feira, 1 de abril de 2020

Todos no mesmo barco

É falsa a ilusão de que à atual perda de liberdade por quem está em isolamento corresponde uma súbita fartura de tempo — commodity que ontem como agora vale uma fortuna e é disputada por ilusionistas de todos os tipos. Alguns mercadores ainda teimam em infiltrar nosso confinamento com oferendas bizarras como “Fashion Trends: Metalizados para o Inverno 2020”. Ou “Saldão de Vinhos Grand Cru, Só Até Amanhã!”. Que amanhã?? Os robôs da rede social Linkedin, que já foi comparada a uma escadaria Escher travestida de degrau de ascensão profissional, continuam a informar promoções individuais e de aniversários em empregos. Que empregos??


Confinados ou não, nos sobra pouco tempo para qualquer coisa que não seja relacionada ao coronavírus — o qual, por sinal, dispensa o qualificativo de “novo” por já ter nome e sobrenome de doença (Covid-19). Em compensação o adjetivo é mais atual do que nunca no conceito de “novo-pobre” delineado pelo economista Ricardo Paes de Barros, que há dias prega políticas sociais imediatas, coerentes e sustentadas para as periferias urbanas. Na nave chamada Brasília a urgência é outra.

Enfiados em nossos casulos de ocasião, a fartura de tempo é ilusória. É preciso digerir os prós e contras do medicamento hidroxicloroquina, ora anunciada como medicamento redentor, ora noticiada como tendo provocado mortes na Nigéria. Também precisamos nos atualizar sobre o significado de anosmia (perda de olfato) e ageusia (perda de paladar), citados como eventuais sintomas paralelos do coronavírus. O noticiário global se mescla ao nacional e ao local, com todos ameaçados pelo mesmo vírus. A doença não distingue entre o pulmão do príncipe herdeiro do Reino Unido e os 1,3 bilhão de pulmões de indianos quarentenados por ordem do governo. A morte tampouco faz distinção entre bípedes — ela é o maior equalizador social que conhecemos, talvez o único. É em vida que sociedades fazem suas escolhas de convívio ou exclusão, que os governantes por ela escolhidos tomam decisões de seleção das espécies.

Por fatalidade, para guiá-lo na travessia dessa peste moderna de proporções ainda incertas, o Brasil tem no comando um fio desencapado. Irresponsável nos atos, celerado nas palavras e perigoso no que pensa. Desacredita nos números de mortos da pandemia em São Paulo e nos Estados Unidos por não lhe convirem politicamente, enquanto manifesta a crença de que “brasileiro não pega nada... o cara sai pulando em esgoto, mergulha, e não acontece nada...” Ou seja, esse brasileirinho safo já nasce com vacina própria: por sobreviver sendo preto ou pardo, pobre e favelado, tem os anticorpos necessários contra uma mera Covid-19. Assunto resolvido.

A semana se encerra com o número de infectados globais embicando para além dos 600 mil. Mesmo assim, em meio à torrente de gráficos, dados e estatísticas ininterruptamente atualizados, nos apegamos a histórias individuais, notícias de algum caso específico que nos toca. Felizmente, somos uma espécie social em comunicação voraz mas ainda capaz de sentir a dor e a alegria do outro.

De certa forma, neste início de 2020, nosso planetinha se parece um pouco com a sina do cruzeiro Zaandam, que zarpou de Buenos Aires no início do mês, e aguarda permissão para atravessar o Canal do Panamá e seguir rumo a algum porto disposto a abrigá-lo. Seus 1.243 passageiros foram informados pelo comandante que há quatro mortos a bordo, vítimas da pandemia. Imagine-se as incertezas da viagem até o navio atracar em seu ponto final. No mundo em terra firme não é diferente. Em ambos confiança e coesão coletiva dependem, em boa parte, da capacidade de seus comandantes.

Diante da orfandade nacional neste quesito, cabe a cada um escolher seus conselheiros. Gera conforto ver emergir uma figura serena, clara e objetiva, que tem falado de forma incansável para um Brasil adulto: Margareth Dalcomo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, sem agenda política para defender. Defende a ciência, o saber, a informação.

De resto, se sobrar tempo, vale mergulhar no recém-lançado “Por que o tempo voa”, de Alan Burdick (Todavia). Ou então resignar-se à constatação formulada por John Updike em suas “Memórias”: “A cada novo dia acordamos ligeiramente alterados, e a pessoa que éramos ontem já não é mais. Portanto, por que ter medo da morte quando ela ocorre o tempo todo?”

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