Era um debate no colégio, no Canadá. O tema girava em torno de questões de gênero. A coisa foi bem até Josh Alexander dar sua opinião. “Na minha visão, há apenas dois gêneros, homens e mulheres”. Terminou preso. Primeiro foi obrigado a cancelar disciplinas, depois insistiu em assistir às aulas, e foi em cana. O caso ganhou alguma repercussão e Josh, um estudante conservador, teve seus momentos de celebridade.
Já participei de muitos debates em escolas. Em geral, a ideia é que seja um espaço de liberdade para cada um dizer o que pensa. Já presenciei broncas e discussões bastante duras. Mas um estudante sair preso confesso que nunca havia visto.
Na verdade, é um sintoma. Não é uma história sobre a “barbárie”, como li, mas sobre nossa civilização. O Canadá surge como um laboratório. Quem sabe a “primeira nação woke do mundo”, na definição de Eric Kaufmann. Não por acaso o Canadá, por muito tempo visto como o país da diversidade. É este o ponto: sobre como lidar com a diferença, sem destruir a própria diferença.
Não há uma resposta simples a essas coisas. Do outro lado do continente, na Flórida, o governador republicano Ron DeSantis faz o exato oposto. “É preciso combater o woke em nossas escolas, em nossos negócios. Não nos renderemos jamais à ideologia woke”, bradou ele, numa paródia churchilliana de gosto duvidoso.
Sua “Stop Woke Act” tenta disciplinar a pregação identitária nas escolas, e foi barrada pela Justiça a partir da ação de organizações como a FIRE, que defende a livre expressão. Mas a confusão está armada. Talvez este seja o principal sintoma do mal-estar contemporâneo.
DeSantis parece claramente equivocado, tentando resolver o problema via ação coercitiva do Estado, e mais ainda as autoridades canadenses, mandando prender um adolescente por dizer o que pensa, em um debate escolar.
A intuição que parece animar a cultura woke e certo ultraconservadorismo é antiga: a ideia de que nosso mundo está contaminado pelas ideias erradas. Pelo preconceito ou pela decadência moral, e que por isso precisa ser devidamente higienizado.
Leio que os livros de Agatha Christie estão sendo revisados, e expressões como “povo núbio” ou “populações nativas” são meticulosamente retiradas. Se virar moda, me diz uma professora, a cada geração teremos de reescrever a literatura universal, vivendo em um eterno presente estético. Além de uma birutice, será uma tremenda perda cultural, pois “deixaremos de observar como gerações passadas se expressavam”.
Leio agora que mesmo a icônica estátua de Adam Smith, no Royal Mile, em Edimburgo, anda ameaçada. Não basta que Adam Smith tenha sido um duríssimo crítico da escravidão. Um comitê criado pela cidade vasculhou sua obra até achar uma passagem “comprometedora”, e seria preciso limpar o centro de Edimburgo de sua ofensiva memória.
Há uma estranha semelhança entre a intolerância atual e o fanatismo da era das guerras de religião nos inícios da modernidade. O desgosto do jovem Lutero com a Roma pervertida, e a indignação da ativista, ainda agora, com os excessos de Jennifer Lopez e Shakira na “exposição do corpo feminino” em um show no Super Bowl.
Seria preciso limpar toda a sujeira espalhada nas redes, na linguagem, na cultura. No século XVI, a maneira de fazer isso era a disciplina religiosa. Na Genebra de Calvino, eram dois cultos diários, os banhos frios e a estrita vigilância sobre os costumes. Hoje somos mais civilizados. Criamos comitês, listamos palavras proibidas, cancelamos e derrubamos estátuas. Evoluímos, Steven Pinker tem razão.
Mas algumas coisas parecem se repetir. A primeira é a aversão à divergência. Dias atrás, todos assistimos a um grupo de estudantes de uma universidade paulista impedindo a realização de uma feira universitária israelense. Em Stanford, causou alguma indignação o banimento de Stuart Duncan, um juiz “conservador”, de uma palestra na universidade.
Há ainda a fixação nos detalhes. A ideia de que “tudo sempre é muito grave e ofensivo”, desde a interrupção de um apresentador em um programa até a piada em um programa humorístico. E daí a ideia de que cabe, sim, ao Estado meter a colher na conduta das pessoas, novamente aproximando o mundo conservador, da Flórida, ao universo woke, no Canadá.
Já algo nisso que vem da nova dinâmica da arena pública: dispondo de uma tribuna dada pela tecnologia, subitamente passamos a agir como pequenos políticos. A sinalizar a própria virtude, exercitar o bom-mocismo, onde se puder. Questão de cálculo. O ambiente digital é perigoso. O mais seguro é sempre dizer alguma coisa que não desagrade a nenhuma minoria barulhenta. Isso vale particularmente para as empresas, que não podem arriscar sua marca.
Além do bom-mocismo, há a retórica de combate. Pesquisa recente mostrou que uma postagem agressiva contra o “outro grupo” tem 67% mais chances de ser replicada nas redes. A linguagem reflexiva, atenta à complexidade das coisas, tem menos poder de engajamento.
O jogo incentiva a posição do “righteous”, de Jonathan Haidt. O moralista, o combatente das boas causas, o “não me venha com essa de entender as razões do outro ou deixar dizer o que quiser”, porque, como li em um grupo de WhatsApp, no final “as vítimas somos nós”.
O desafio é separar o joio do trigo. A demanda por não discriminação e o desejo obsessivo de regular os outros. O direito de afirmar minha maneira de viver, mas não o de banir quem deseja viver de modo distinto.
Vai aí o traço curioso da cultura woke: como uma forma cultural cuja razão de ser, em algum momento, foi a aceitação da diferença, vai se convertendo em um tipo de monismo moral que gradativamente não aceita diferença nenhuma.
Se alguém quiser lidar com diversidade, vale, em primeiro lugar, levar a sério o próprio conceito. Critérios raciais e de gênero são cruciais, tanto quanto muitos outros traços constitutivos de nossas identidades. Pertencemos a gerações diferentes, há temas ligados ao etarismo, aos diferentes ângulos da neurodiversidade, mas o tema vai além.
Ele diz respeito a visões de mundo, crenças religiosas, origens regionais ou orientações políticas. Vai aí um segundo ponto: a preservação da liberdade de expressão, essencial para que o argumento da diversidade não seja capturado por essa ou aquela ideologia e se torne um exercício de padronização da cultura. Por fim, o foco em atitudes reais de inclusão.
Fazer retórica é fácil. Mais difícil é criar oportunidades de verdade, capacitar pessoas, apoiar sua autonomia com ações no mundo real, em vez de apostar na guerra permanente para suprimir palavras, banir livros e derrubar estátuas.
A diversidade é um traço definidor da modernidade. Quem leu os Ensaios de Montaigne deve se lembrar de seu memorável relato sobre os índios tupinambás, vindos do Brasil. Montaigne foi um liberal avant la lettre. Dizia que era preciso prestar atenção aos próprios pecados e que, em geral, “cada um chama de barbárie o que não é seu costume”.
Nestes tempos difíceis, talvez valesse a pena voltar a suas lições, que falam do melhor da modernidade: a curiosidade diante do mundo imenso e desconhecido, o apreço pela diferença e sua prima irmã, a tolerância. Valores dos quais não deveríamos descuidar, mas que parecemos ir deixando escapar por entre os dedos, lentamente.
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