sexta-feira, 27 de março de 2020

A dor em tempos de coronavirus

Desde o dia 1º de março, uma letra e um número colocados no alto da folha da declaração de óbito podem significar a diferença entre uma despedida digna e um enterro expresso na cidade de São Paulo, a mais atingida no Brasil até agora pela pandemia do novo coronavírus. À dor da perda, soma-se a tragédia de não não poder sequer dizer adeus. Todos os casos confirmados de morte pela doença e também aqueles em circunstâncias que indiquem essa possibilidade, como pessoas acima de 60 anos com problemas respiratórios, recebem a sigla D3 no atestado do serviço funerário municipal, o que se traduz num protocolo que prevê velório de no máximo dez minutos, ao ar livre, com limite de até dez pessoas, e caixão totalmente lacrado. Apenas em uma manhã de quarta-feira, ÉPOCA contabilizou 19 casos com esse desfecho no Cemitério Vila Formosa, o maior da América Latina, na Zona Leste paulistana. No dia anterior, o Ministério da Saúde atestara 12 novas mortes confirmadas pelo novo coronavírus em todo o país.

“Morreu com mais de 60 anos e teve como causa do falecimento insuficiência respiratória, a gente já carimba D3”, disse um funcionário do Serviço Funerário do Município de São Paulo. A vestimenta dos coveiros também mudou na esteira da crise. As luvas simples e uniformes comuns deram lugar a trajes especiais, completamente vedados, com máscaras para o rosto e luvas duplas — por baixo das antigas, os profissionais utilizam outras, cirúrgicas, para reforçar a precaução contra o contato.

A transformação mais dramática se dá para quem perdeu pai, mãe, amigo. “O caixão de meu pai estava fechado, sem visor para vermos seu rosto. A madeira estava lacrada como se ele oferecesse risco de contaminação. Isso é desolador. Queríamos pelo menos dar um beijo em seu rosto, fazer um carinho de despedida, pois ele foi um homem muito bondoso para toda a família”, contou a comerciante Jandira Fonseca Santos, de 51 anos, o rosto coberto por uma máscara e a 1 metro de distância do caixão do pai.

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A cena daquela manhã havia começado a se desenrolar na madrugada do domingo 22, quando Ignácio Fonseca Santos, de 81 anos, já doente, sentiu uma dor no peito e dificuldade para respirar. Jandira o levou ao pronto-socorro, a médica deu orientações para o confinamento e prescreveu um exame para coronavírus. Na noite de segunda-feira, a filha sentiu uma brisa entrando pela janela e resolveu vestir uma camisa no pai. Jandira percebeu que as pernas e os braços do idoso estavam muito frios, gélidos, na verdade. Mas ele garantiu estar bem. Ela foi até a cozinha passar um café quente. Quando voltou ao quarto do pai com uma xícara, Ignácio já estava morto. O resultado do exame não chegou a ficar pronto, mas o atestado de óbito indicava a possibilidade de morte pelo novo coronavírus, o que se refletiu naquele desfecho. Ignácio, portanto, está fora das estatísticas do Ministério da Saúde.

O velório durou apenas dez minutos marcados no relógio, conforme o previsto. Além de Jandira, acompanhava o corpo apenas sua irmã, Maria de Fátima Fonseca. Quando faltavam dois minutos para o ritual se encerrar, um funcionário do cemitério foi até as filhas de Ignácio avisar que o carro estava pronto para levar o corpo. O enterro na cova rasa, em meio à terra vermelha e fofa, foi ainda mais rápido que o velório.

Em razão da escassez de testes no Brasil, apenas pacientes que apresentam sintomas graves da doença, como dificuldade para respirar (a chamada Síndrome respiratória aguda grave), e tenham tido contato com pessoas infectadas estão sendo submetidos a exames. O governo já prometeu ampliar a capacidade, como fizeram outros países, e mais de 20 milhões de testes estão sendo aguardados para as próximas semanas. Essa dinâmica, contudo, provoca uma escalada dos casos suspeitos, e a hipótese de subnotificação de pessoas realmente infectadas. Desde a quinta-feira 19, o Ministério da Saúde deixou de divulgar a quantidade de possíveis infectados, mas algumas secretarias estaduais de Saúde seguem monitorando os números. Em Minas Gerais, por exemplo, havia 12 mil casos suspeitos e apenas 153 confirmados até a tarde de quinta-feira. No mesmo dia, no Brasil, os casos confirmados beiravam 3 mil, e as mortes 77, em números que crescem dia após dia. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou em coletiva à imprensa na quarta-feira que já é esperada uma escalada rápida nos números assim que os novos testes chegarem.

A sigla D3 no alto da certidão de óbito não significa um atestado formal de que a pessoa foi vítima do novo coronavírus. Há casos que foram confirmados pelos hospitais e outros em que simplesmente as circunstâncias indicam a possibilidade, mesmo sem um exame, o que recomenda cautela dos profissionais que vão fazer o enterro. É uma padronização administrativa do Serviço Funerário de São Paulo, sem validação médica, o que pode gerar distorções. Procurada para explicar os critérios que levam à classificação de morte suspeita, a prefeitura de São Paulo, responsável pelo serviço, afirmou que o código D3 “é usado para a segurança dos funcionários que realizam os manejos dos corpos com suspeitas ou casos confirmados da Covid-19” e que não é “parâmetro estratégico sobre os óbitos” decorrentes da doença. Ainda segundo a prefeitura, não há contabilização sobre o número de declarações de óbito expedidas sob o código D3 em São Paulo desde o início da pandemia.

Os enterros-relâmpago não distinguem classe social nem fronteira. No Rio de Janeiro, o empresário Christiano Bandeira de Mello, filho da empresária Mirna Bandeira de Mello, morta na segunda-feira após uma semana internada com o novo coronavírus, enterrou a mãe sem um amigo ou parente sequer. “Tive de sepultar minha mãe sozinho. Se fosse em condições normais, ela teria milhões em seu enterro”, afirmou Christiano ao colunista de ÉPOCA Guilherme Amado, numa conversa por telefone, pouco antes de desligar para participar de uma missa on-line em memória da mãe. “É um vírus letal para quem não está com uma saúde perfeita. Pode acontecer com qualquer pessoa. Infelizmente foi com minha mãe”, lamentou.

Mesmo quando não há suspeita de coronavírus como causa da morte, a recomendação para evitar aglomerações leva ao cancelamento de velórios e a enterros restritos a poucos parentes, se tanto. Na semana passada, no enterro de Affonso Arinos de Mello Franco, acadêmico da Academia Brasileira de Letras (ABL), que morreu aos 89 anos, de infarto, não houve velório — para complicar, a maioria dos integrantes da ABL faz parte do grupo de risco em razão da idade.

Na Itália, que contabiliza centenas de mortos a cada dia pelo novo coronavírus, os funerais foram banidos. “Essa pandemia mata duas vezes. Primeiro, te isola de quem você ama logo antes da morte. Depois, não te permite um fecho”, disse um funcionário de uma funerária em Milão à BBC. Histórias assim já se repetem na Espanha e nos Estados Unidos, novos epicentros da doença que já deixou mais de 15 mil mortos pelo mundo todo desde que surgiu, no final de dezembro passado, na China.

Maria Francisca, de 61 anos, também foi sepultada no Cemitério Vila Formosa com suspeita do novo coronavírus. Com medo da doença, nenhum parente compareceu ao velório durante os dez minutos reservados em uma tenda ao ar livre para o último adeus. Na hora de levar o corpo para a cova, por volta das 9h40 de quarta-feira, um funcionário gritou “quem está acompanhando o corpo de Maria Francisca?”. Não houve resposta. Deu-se início a um dilema. O que fazer com o caixão? Um funcionário da administração telefonou para o nome que aparecia na guia do cadáver, e uma hora e meia depois surgiu no cemitério Fernanda Gusmão, de 63 anos, amiga de Maria Francisca.

“Os parentes estão todos confinados com suspeita de coronavírus. Não podem sair de casa. Irei acompanhar o enterro”, anunciou. Fernanda usava máscara e luvas de látex. Seguiu o caixão da amiga a pelo menos 10 metros de distância e não chegou perto da cova em que Maria Francisca foi enterrada sem qualquer flor. “Faço parte do grupo de risco. Só estou aqui porque ninguém merece ser enterrado feito indigente”, disse, quando saía às pressas.

Na manhã que ÉPOCA passou na Vila Formosa, até uma criança de 6 anos foi sepultada sob essa classificação. Quando a mãe viu o caixão todo lacrado com fita adesiva e sem o visor de vidro, entrou em desespero. Os parentes guardavam uma certa distância do caixão, mas ela não; tentava forçar a abertura para colocar flores em volta do filho. Foi preciso o diretor do cemitério ir até ela para explicar que, se o caixão fosse aberto, todos no local correriam risco de contaminação. Ela insistia: “Poxa, só uma florzinha. Deixa, por favor. Nunca mais vou ver meu menino. Deixa...”. O apelo dramático não surtiu efeito. O filho foi velado em dez minutos e enterrado em menos de cinco. “O que poderia consolar o coração de uma mãe que não consegue fazer um velório decente para seu filho?”, questionou Lourival Panhozzi, presidente da Associação Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário.

O ritual da despedida e do luto é um passo relevante na aceitação da perda e posterior superação da dor, dizem psicólogos e psicanalistas. Quando essa cerimônia é negada a quem fica, os efeitos podem ser duradouros. “Geralmente um parente aceita completamente a perda em um ano. Mas, se não houver uma oportunidade de despedida, essa aceitação pode durar uma vida”, pontuou a psicóloga Júlia Catani. Ela afirma que há alternativas para tentar tornar a não despedida menos dolorosa. “Pode-se fazer um ritual dentro de casa com um encontro de amigos e parentes ou orações mesmo sem o corpo.”

Apesar das restrições severas em vigor no Brasil e em boa parte do mundo, não há casos de contágio do novo coronavírus por meio de cadáveres. Um dos problemas é que mesmo depois da morte o vírus pode permanecer nas roupas e objetos ainda por várias horas, o que tem levado às medidas de lacração quase imediata do caixão.

Até por isso, não há um consenso em relação aos procedimentos para o sepultamento. Uma portaria assinada pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), no dia 21 de março determina que os parentes não podem tocar os corpos dos mortos durante o velório. Em Mato Grosso, o governador Mauro Mendes (DEM) proibiu qualquer tipo de velório e funerais por três meses.

O Ministério da Saúde publicou no dia 23 de março um documento de 16 páginas com diretrizes também rigorosas para manejo de corpos durante a pandemia. Em época de isolamento social, por exemplo, o governo federal não recomenda que os corpos de pessoas com teste positivo para Covid-19 e até mesmo de suspeitos de contaminação sejam velados. Isto é, os corpos devem seguir do hospital ou de casa para o Instituto Médico Legal (IML), de lá diretamente para a funerária e depois direto para a cova.

Na contramão dessa tendência, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou no dia 24 um guia de orientação aconselhando que os corpos das vítimas da nova doença sejam velados normalmente. “Até agora não há evidências de pessoas que tenham sido infectadas pela exposição aos corpos de pessoas que morreram da Covid-19”, disse a OMS. Em outro trecho, a entidade internacional afirmou que “a dignidade dos mortos, sua cultura, religião, tradições e principalmente seus familiares devem ser respeitados”. A recomendação para evitar aglomerações em velórios e que eles sejam feitos em local aberto, entretanto, continua mantida.

“Acho um exagero o que está sendo feito no Brasil. O coronavírus é um organismo poderoso, mas ele não perfura vidros e madeira. Todo mundo tem o direito de se despedir com dignidade de seus familiares, independentemente do que tenha sido o motivo da morte”, disse Lourival Panhozzi, da entidade do setor funerário.

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