“Estamos tão habituados à velha antinomia entre razão e paixão, entre espírito e vida, que quase nos assustamos com a ideia de um pensar com paixão — quando o pensamento e o viver pleno se fundem”, escreveu Hannah Arendt mais de meio século atrás. Sim, a alegria coletiva assusta, a autenticidade e a diversidade individual assustam, a realidade e a bagunça democrática assustam quem está impregnado de preconceitos. O medo aprisiona e levou a veterana colunista Anna Marina, do Estado de Minas (cujo caderno de cultura, Pensar, é um dos melhores da imprensa brasileira), a se sentir ofendida com o que viu na TV: “Podemos ter índios, pretos e estropiados compondo nosso povo, mas colocar essa seleção na cara da nação me pareceu uma forçada de mão. Essa gente responsável por representar o novo poder me causou péssima impressão”. O jornal que publica a coluna diária de Anna Marina há décadas é o mais influente de Minas Gerais, estado que, por sua vez, tem o terceiro maior colégio eleitoral do país. A visão racista do “dessa gente” nada tem de excepcional, apenas não costuma ser explicitada de forma tão direta nos jornais.
O Brasil que gostaria de não ter povo, ou aquele para quem o povo deveria ter a gentileza de permanecer invisível, não deixou de existir com a vitória de Lula. Está apenas se recompondo do baque eleitoral.
Para alguns, nem isso. Basta entrar no perfil de Jair Bolsonaro no Twitter. Naquele espaço virtual, onde o ex-mandatário tem 10,8 milhões de seguidores, ele continua a se apresentar como “Capitão Paraquedista do Exército Brasileiro. Presidente da República Federativa do Brasil. Candidato à reeleição com o número 22”. É o negacionismo de fachada, no qual nem ele acredita, mas lhe é indispensável para ganhar tempo. Acovardado em Orlando na casa de um casal brasileiro fraudador do Auxílio Emergencial, Jair mantém no seu perfil virtual um endereço fictício: “Brasília, Brasil”. Em realidade, demonstra pouco apetite para retornar à pátria tão falsamente invocada ao longo de quatro anos. Aqui, mais cedo ou mais tarde, e com desfecho imprevisível, ele tem encontro marcado com a Justiça. Não só ele, como sua prole. Por via das dúvidas, entre o primeiro e o segundo turnos, o primogênito, senador Flávio Bolsonaro, e seu irmão Eduardo, deputado federal, já encaminharam a papelada de requerimento da cidadania italiana.
Enquanto isso, a Brasília oficial vai virando uma colorida nova capital do poder nacional, com vestidos, batas, cocares, terninhos e pantalonas convivendo entre ternos e gravatas. Se o núcleo político do governo anterior abrigava 38% de militares (sendo um da ativa), entre os 37 integrantes do primeiro escalão de Lula os militares representam apenas 2%. Por si só, o refluxo para algum porão brasiliense do general da reserva Augusto Heleno já torna o Palácio do Planalto mais arejado. Os novos ocupantes da casa nem sequer pretenderam confiar no apego à democracia do Gabinete de Segurança Institucional chefiado por ele. Dispensaram seus serviços antes mesmo de serem empossados.
Na manhã de sexta-feira, sentado na cabeceira de uma mesa cujo tamanho Vladimir Putin apreciaria, Lula reuniu toda a banda de seu primeiro escalão e as lideranças do seu governo no Congresso.
— Este será o mandato de minha vida — voltou a dizer, refraseando o que já dissera durante a campanha.
Veterano no cargo, desta vez está determinado a errar o mínimo possível. Como primeiro incêndio a apagar está a nomeação, por indicação do União Brasil, de Daniela Carneiro para a pasta do Turismo.
Sob qualquer ângulo que se olhe, ela introduz na cúpula do poder federal, direta ou indiretamente, o veneno miliciano da Baixada Fluminense. O risco é alto. Qualquer decisão será difícil de tomar logo nos primeiros dias de mandato. É Lula 3, o começo. Bom dia, democracia.
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