sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Prezado Jair,

A disputa eleitoral acabou, presidente. É hora de seguir adiante

Escrevi-lhe uma carta aberta às vésperas da eleição para dizer que torcia pelo sucesso do seu governo e pedir que pensasse no comportamento dos seus filhos, na questão dos direitos humanos e do meio ambiente, desse apoio à Lava-Jato, não fosse tão boquirroto. Santa ingenuidade! O senhor, pelo visto, não leu O GLOBO aquele dia — ou leu e achou que se tratava de psicologia reversa.


As frases infelizes continuaram, e seguem num crescendo. Os “paraíbas” que o digam. E as mulheres (“Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. E os que estão abaixo da linha da pobreza (“Fome no Brasil é uma grande mentira"). E os que acreditavam numa nova forma de fazer política (“Vou privilegiar filho meu sim"). Até esta nova carta ser postada, sabe-se lá quantos novos despautérios terão sido ditos.

Presidente, não é preciso ir aonde vivem os “paraíbas” para ver que há fome no país. No Rio de Janeiro, seu domicílio eleitoral, o que não falta são cidadãos vivendo sob marquises e viadutos, revirando lixeira atrás de comida. Não daria para matar, em sete meses, a fome dos brasileiros que o PT em 13 anos não tirou da miséria (o partido desviou bilhões que poderiam servir para isto). A fome existe e continuará aí se a corrupção for apenas substituída pela incompetência.

A expectativa das privatizações e da aprovação das reformas já teve efeitos positivos. Mas isso aconteceu apesar do senhor, não por sua causa. Enquanto a equipe econômica faz o dever de casa e o Congresso se articula, o senhor e os seus filhos provocam quase uma crise política por dia. Foram criados 408 mil empregos formais no primeiro semestre. Imagine se não houvesse ninguém atrapalhando...

“O Brasil não pode ser um país do mundo gay, do turismo gay. Temos famílias." Miami atrai mais turistas que o Brasil inteiro, presidente. E lá não tem Chapada Diamantina, Lençóis Maranhenses, barroco mineiro, carnaval, Parintins. Liberar o visto foi um bom começo, mas não dispomos de infraestrutura nem segurança; voar aqui é caro, os portos são ruins, os parques nacionais são para os abnegados. Na Espanha, o turismo responde por quase 15% do PIB. Abandone essa obsessão pelos gays por um minuto: estamos falando de empregos, de renda.

O problema da Amazônia não está no Inpe, que só coleta os dados do desmatamento. Está em quem desmata, depreda, degrada. O desmanche da política ambiental será um legado macabro para o próximo governo e as gerações futuras. Desenvolvimento sustentável não interessa apenas aos “veganos que comem só vegetais”. Ou o senhor crê que os carnívoros vivam num planeta à parte?

A censura acabou faz tempo, e vem o senhor falar em colocar “filtro” na Ancine, ou extingui-la. O cinema é uma indústria poderosa (lucro global de U$ 96,8 bilhões em 2018). Peça ao embaixador Zero3 para se informar com o Trump a respeito do que essa atividade faz pela cultura e pela economia dos Estados Unidos. E deixe a censura na cova onde ela estava enterrada desde o fim da ditadura.

Autoridades dos três Poderes tiveram seus celulares invadidos, e essa vulnerabilidade não o preocupa (“Não tem nada que comprometa. (...) Perderam tempo comigo”). Há mais uma chacina no sistema prisional e sua reação é “Pergunta para as vítimas dos que morreram lá”. E ainda tripudia e mente sobre um desaparecido político e uma jornalista torturada.

A disputa eleitoral acabou, presidente. É hora de seguir adiante. Entretanto, em vez de cauterizar a ferida aberta pela polarização ideológica, o senhor se empenha em infectá-la.

Lula não inventou a corrupção nem Dilma, o ridículo. Tampouco é sua a invenção da falta de compostura, civilidade e empatia. Mas é preciso que se dê conta de que governa o Brasil, não a Bolsolândia. Que 57 milhões de brasileiros o escolheram porque queriam no poder um “homem comum”, com aqueles princípios morais tão escassos nos governos anteriores. E estes sete meses não fizeram jus a essa esperança.

O sentimento anti-PT ajudou a elegê-lo. A repulsa ao seu comportamento pode trazer o passado de volta. O senhor tem até outubro de 2022 para começar a se portar como um presidente. Não espere chegar lá para refrear esse falastrão descontrolado. Pode ser tarde demais.

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