quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Não se deixem cegar pela raiva

Joe Biden tentou refrear a sede de vingança do Estado de Israel pelos ataques do Hamas de 7 de outubro. “Não se deixem cegar pela raiva.” Biden recordou que na reação aos ataques do 11 de setembro foi isso que aconteceu aos Estados Unidos e que, por isso, admitiu, cometeram erros. Nestas palavras está implícito um mea culpa pelas decisões do pós-11 de setembro, que culminaram na invasão do Afeganistão com o apoio das forças aliadas, mas à revelia da ONU.


O Afeganistão foi um banho de sangue. Morreram quase 50 mil civis com a invasão e durante a ocupação. Em nome de quê? Desmantelar a organização terrorista Al Qaeda e tirar do poder o regime talibã. Correu muito mal. Nada foi conseguido. Sobretudo, para o que interessa aqui, os civis afegãos nada sabiam da Al Qaeda e pouco sabiam das duas torres que tinham colapsado. Foram bombardeados e foram vítimas de uma ação militar pensada e organizada sem os considerar como sujeitos de quaisquer direitos, nem sequer do direito à vida.

Robert Fisk foi o jornalista ocidental que ficou no Afeganistão, mesmo depois dos primeiros bombardeamentos. Relatou as mortes, a destruição de aldeias e o total desrespeito pelas vidas daquelas pessoas. Foi o grande defensor do povo afegão. E, por isso, foi penalizado e até ridicularizado publicamente. Fisk, no seu livro A Grande Guerra pela Civilização, relatou em detalhe o que vos estou a contar e relatou até a forma como foi alvo de chacota impiedosa por ter sido o único a sentir empatia pelo sofrimento afegão. Não cedeu à pressão da lógica que estava estabelecida: os Estados Unidos tinham sido vítimas de um ataque terrorista sem precedentes e estavam, por isso, legitimados a agir da forma que entendessem ser a adequada. Robert Fisk deu conta de outros jornalistas que ainda assistiram a ataques aos civis afegãos, mas nenhum deles estava disposto a denunciá-los.

O livro de Robert Fisk é importante para a justiça histórica e para que não esqueçamos tudo aquilo que somos capazes de fazer, de apoiar ou, simplesmente, aquilo a que somos capazes de fechar os olhos. Ficar calado perante uma injustiça é participar nela.

Fiquei surpreendida com o mea culpa de Biden. Não esperava que reconhecesse que a sua nação cegou com a raiva e que aquilo que fez a seguir não deve servir de exemplo para outras nações em situações que possam ser comparadas, como é o caso de Israel agora. Esteve bem Joe Biden. Nada disto é suficiente para fazer pazes com a política externa dos Estados Unidos, nem nada que se pareça, mas o que é justo é justo. Neste caso, Biden fez duas coisas que merecem elogio: deu um bom conselho e fez uma autocrítica.

Metemos a cabeça debaixo da areia quando os nossos aliados violam o direito internacional e a seguir apagamos da memória coletiva que tenha acontecido. Eternizamos o luto pelo sofrimento daqueles que, de alguma forma, nos são próximos e assumimos que é causa legítima para quase tudo.

Não se diga que a nossa seleção daqueles que são próximos assenta em distâncias ou geografia. Os israelitas e os palestinianos estão à mesma distância e na mesma geografia. É outra coisa muito mais inconfessável. Uma coisa que atira os mortos afegãos, iraquianos, palestinianos e tantos outros para um saco sem fundo. Cabem lá imensos e o saco nunca rebenta.

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