domingo, 7 de julho de 2019

O imprevisto triunfo de Antônio Conselheiro

Li “Os sertões”, do Euclides da Cunha, há muitos anos, quando ainda acreditava, ingenuamente, que conseguiria um dia compreender o Brasil. Não é para isso que servem, afinal, os textos fundadores de um qualquer país?

O livro, publicado em 1902, é um produto dessa época, para o melhor e para o pior, sendo o pior a utilização de teses racistas, próximas do chamado “darwinismo social”, para defender a superioridade da “raça branca” e combater a mestiçagem. Nesse sentido, “Os sertões” ajudam-nos mais a compreender aquele estranho momento da irracionalidade humana que possibilitou, décadas depois, a ascensão do nazismo, do que a entender o Brasil. Cientificamente, o livro vale como um contributo tropical para a história da estupidez.

Já enquanto reportagem de guerra, o texto de Euclides da Cunha não envelheceu. Isso acontece, suspeito, porque não se trata apenas de uma reportagem de guerra, mas de uma guerra reportada por um verdadeiro escritor.


Euclides da Cunha, o escritor, sobrepõe-se o tempo todo ao Euclides da Cunha, o jornalista, apaixonando-se pelas suas personagens e dando-nos a ver a Guerra de Canudos na sua intimidade mais intensa, muito para além do óbvio e do mero relatar de eventos.

Assim, enquanto reportagem de guerra na sua forma literária, como fariam, muitos anos mais tarde, Gabriel García Marquez em “Operação Carlota” ou Ryszard Kapuscinski, em “Mais um dia de vida” (ambos sob a guerra civil angolana, e se os cito aqui é porque me sinto mais próximos deles), “Os sertões” serve o propósito de nos auxiliar a compreender um pouco do que é o Brasil dos nossos dias. Naqueles sertões dos finais do século XIX já se desenhavam todas as grandes contradições do país hoje presidido por Jair Bolsonaro: as profundas divisões de classes, com uma suposta elite urbana de origem europeia, convencida dos seus direitos de mando consuetudinário, e um mundo rural miserável e arcaico, presa fácil de seitas religiosas ultraconservadoras e de discursos messiânicos.

Muitos sertões depois, Antônio Conselheiro chegou triunfante ao Planalto, com os seus rudes jagunços armados até aos dentes, e a confusa distopia de um Brasil enclausurado no passado, sujeito ao Deus furioso do Antigo Testamento e respeitador da família e dos valores tradicionais. O inusitado é que, desta vez, Antônio Conselheiro e o seu exército de piedosos pistoleiros não só não foram travados pelos militares e pela elite urbana como contaram com o ativo apoio destes.

“Os sertões” ajudam-nos a entender o Brasil? Será que se tivéssemos todos lido e discutido o texto de Euclides da Cunha, com mais interesse e mais profundidade, poderíamos ter previsto o regresso triunfante de Antônio Conselheiro?

Não tenho a certeza. Acredito, contudo, que, relendo-o hoje, talvez consigamos compreender melhor o coração deste Brasil arcaico, mágico, feroz e cruel, que gerou Antônio Conselheiro, e que é o mesmo, afinal, que gerou os militares e a elite supostamente europeia e supostamente moderna que o matou. Por isso estão todos juntos hoje. Juntos, mas não misturados. Juntos, mas não para sempre.
José Eduardo Agualusa

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