Há algum tempo, um grupo de pesquisadores, levando em conta motivações subjetivas, levantadas em entrevistas, e objetivas, os indicadores socioeconômicos, começou a “medir” a felicidade. Segundo a pesquisa, em 2020 e em 2021, a Finlândia foi o país mais feliz do mundo.
Já estive em Helsinque, uma cidade sombria, cheia de bêbados caídos na rua, mas extremamente organizada. Na época (já se vão trinta anos), conheci alguns brasileiros ou filhos de brasileiros que viviam lá, todos com nível de vida bem razoável, ainda que se ocupando de funções pouco valorizadas. Um deles, que cuidava dos casacos deixados à entrada de um bar, me disse que, trabalhando também como pintor de paredes, conseguia ter um carro desses supercaros, ainda que não o modelo mais recente. Um país com um inverno tão rigoroso, clima que associamos a isolamento e tristeza, surpreende ao encabeçar a lista da pesquisa, ainda mais sendo acompanhado por Islândia e Dinamarca, segundo e terceiro lugares no ranking da felicidade. A despeito de toda crítica que se possa fazer a uma medida dessas, ela não parece encantada com o Brasil tropical, onde em se plantando tudo dá, mas também onde a fome só faz crescer. O modelo socioeconômico monstruoso adotado no país não deixa ninguém mais se enganar com a nossa alegria carnavalesca, que é, de fato, uma alegria — um, e apenas um, dos fatores que compõem a felicidade.
Entre os dias 24 de janeiro e 2 de fevereiro, uma face da atrocidade brasileira foi mostrada ao mundo. Assistimos na televisão a três homens matando a paulada Moïse Mugenyi Kabagambe, um congolês de vinte e quatro anos. A paulada. Matar assim exige perseverança, o que não combina com uma raiva momentânea. Aqueles assassinos estavam tomados por uma premeditação bestial. A família de Moïse havia saído do Congo treze anos antes dessa tragédia que a acometeu. Fugiam de outras tragédias, inúmeras num país rico em minerais e, mesmo depois de se tornarem independentes da Bélgica, massacrado por interesses externos que se misturam às lutas locais de poder. Luiz Antonio Simas, pesquisador da vida de rua carioca, afirmou o seguinte: “O melhor que existe nessa cidade terrível e bela, filha da morte e da chibata, veio do Congo: samba”. O crime contra Moïse afirma a voz dos que não se conformam nem com o fim da escravidão nem com o fato de uma de nossas manifestações mais criativas, pérola na lama de nossa história, ser obra dos negros. Acrescentem-se a isso doses de xenofobia.
No dia 2 de fevereiro, enquanto havia festa no mar, Iemanjá celebrada, um militar viu um negro, Durval Teófilo Filho, trinta e oito anos, mexer em uma pasta e achou que seria assaltado. O que fez? Atirou contra a possível ameaça. O assassino e a vítima eram vizinhos em um condomínio no Colubandê, bairro de São Gonçalo. No início, a polícia chegou a defender a tese de que o assassino não tinha a intenção de matar. Qual seria então a intenção? Comemorar o gol do time? Usar a arma por usar? Testar a mira? Com a reação da sociedade, o militar da Marinha foi qualificado como assassino doloso. O que ele é, e não é o único, e não será o único à medida que armar a população tem sido a política de segurança do atual governo.
A morte de Moïse e a de Durval infelizmente não são um acidente. Matam-se negros aos montes. A polícia entra em favelas e, quase sempre, deixa um saldo escandaloso de mortos. Negros na maioria, muitos inocentes, sem envolvimento com o tráfico ou outra forma de crime. Como soldados do tráfico, negros também se matam uns aos outros. Negros são mortos na porta de casa como foi o caso de Durval e de outros tantos, crianças inclusive, que podemos puxar da memória. Na imagem que mais nos aproxima da chibata dos tempos da escravidão, negros levam pauladas até a morte.
No Marrocos, Rayam Awram, um menino de cinco anos, foi tragado por um buraco de trinta e oito metros. O drama de seu resgate durou dias, e os marroquinos, mas não só eles, acompanharam diuturnamente o esforço da equipe de socorro. No quarto dia, o pequeno Rayam foi resgatado, mas não resistiu. Marrocos transformou essa tragédia em uma dor coletiva.
Dor coletiva deveria ser a nossa diante da morte de Moïse e Durval. Mas o fato é que esses crimes não encontram o repúdio de todos, em particular daqueles que podem mudar as leis e fazer cumpri-las. Ao contrário, quando mataram Marielle, em ações coordenadas pela milícia digital, trataram de associar caluniosamente a vereadora a criminosos. Agora, dizem, Moïse seria um drogado inoportuno. E que absurdo foi esse de Durval mexer em uma bolsa em uma região considerada violenta? Em 2018, Rodrigo Serrano, um garçom negro, desceu ao pé do Chapéu Mangueira para esperar a mulher e a filha. Chovia, e ele abriu o guarda-chuva. Foi o suficiente para a polícia deduzir que ele estava armado de um fuzil. Atiraram sem pena nem dó. Muitos batem palma para a polícia e vão à loucura quando se estuda uma mudança na lei que dê a ela licença para matar, o tal “excludente de ilicitude”.
Nada anda muito bem? Corrijo-me: tudo anda mal. Demos adeus à felicidade.
Alexandre Brandão
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