O que queremos dizer, por exemplo, com a palavra “paz”? Uma ausência de conflito? Um esquecimento? Perdão? Ou um grande cansaço, uma exaustão, um esvaziamento do rancor?
Parece-me que o que a maioria das pessoas entende por “paz” é a vitória. A vitória do seu lado. É isso o que “paz” significa para “eles”, enquanto, para os outros, paz quer dizer derrota.
Se predominar a ideia de que paz, embora em princípio desejada, acarreta uma inaceitável renúncia de demandas legítimas, então o rumo mais plausível será a prática da guerra por todos os meios possíveis. Se não fraudulentos, os apelos de paz serão tidos certamente como prematuros. A paz se torna um espaço onde as pessoas não sabem mais como habitar. A paz tem de ser repovoada.
Recolonizada...
E o que entendemos por “honra”?
Honra como um exigente padrão de conduta privada parece pertencer a um tempo muito remoto. Mas o costume de conferir honrarias — lisonjear a nós mesmos e uns aos outros — continua inabalável.
Conferir uma honraria é confirmar um padrão que, supostamente, compartilhamos e defendemos. Aceitar uma honraria é acreditar, por um momento, que o merecemos. (O máximo que podemos dizer, com toda a decência, é que não somos indignos da homenagem.) Recusar uma honraria parece rude, insociável, pretensioso.
Um prêmio acumula honraria — e a capacidade de conferir honrarias — pelas escolhas anteriores de seus vencedores.
Segundo esse critério, examinemos o polemicamente chamado prêmio Jerusalém, que na sua história relativamente breve foi conferido a alguns dos melhores escritores da segunda metade do século XX. Embora seja, por todos os critérios óbvios, um prêmio literário, não é chamado de prêmio Jerusalém de Literatura, mas prêmio Jerusalém pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade.
Será que todos os escritores que ganharam o prêmio lutaram de fato pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade? Será isso o que eles — agora devo dizer “nós” — têm em comum?
Creio que não.
Eles não representam apenas um amplo espectro de opiniões políticas. Alguns deles mal tocaram nas Grandes Palavras: liberdade, indivíduo, sociedade...
Mas o que importa não é o que um escritor diz, é o que um escritor é.
Escritores — assim denomino os membros da comunidade da literatura — são emblemas da persistência (e da necessidade) de visão individual.
Prefiro usar “individual” como adjetivo a usá-la como substantivo.
A propaganda incessante em nosso tempo em favor do “individual” parece-me profundamente suspeita, pois “individualidade”, em si mesma, se torna cada vez mais um sinônimo de egoísmo. Uma sociedade capitalista parece agir em interesse próprio quando elogia a “individualidade” e a “liberdade” — que pode significar pouco mais do que o direito de engrandecimento perpétuo do eu, e a liberdade de fazer compras, adquirir, esgotar, consumir, tornar obsoleto.
Não creio que exista nenhum valor intrínseco no cultivo do eu. E acho que não existe nenhuma cultura (empregando o termo de modo normativo) sem um padrão de altruísmo, de consideração pelos outros. Creio de fato que existe um valor intrínseco em ampliar a nossa ideia do que a vida humana pode ser. Se a literatura me mobilizou como um projeto, primeiro como leitora e depois como escritora, ela é uma extensão da minha solidariedade aos outros eus, aos outros domínios, outros sonhos, outras palavras, outras áreas de preocupação.
Como escritora, criadora de literatura, sou tanto uma narradora como uma pensadora. As ideias me põem em movimento. Mas romances são feitos não de ideias, e sim de formas. Formas de linguagem. Formas de expressividade. Não tenho uma história na minha cabeça antes de ter uma forma. (Como disse Vladimir Nabokov: “O padrão da coisa precede a coisa”.) E — implícita ou tacitamente — romances são feitos da noção que o escritor tem daquilo que a literatura é ou pode ser.
A obra de todo escritor, toda performance literária é uma justificação da literatura em si, ou redunda nisso. A defesa da literatura tornou-se um dos temas principais do escritor. Mas, como observou Oscar Wilde, “uma verdade na arte é aquela cujo oposto é também verdadeiro”. Parafraseando Wilde, eu diria: uma verdade sobre a literatura é aquela cujo oposto é também verdadeiro.
Assim, a literatura — e falo de forma prescritiva, não apenas de forma descritiva — é autoconsciência, dúvida, escrúpulo, rigor. É também — de novo, de forma prescritiva e também descritiva — canto, espontaneidade, celebração, êxtase.
Ideias sobre literatura — à diferença das ideias sobre, digamos, o amor — quase sempre surgem como uma reação às ideias de outras pessoas. São ideias reativas.
Digo isso porque tenho — ou a maioria das pessoas tem — a impressão de que você está dizendo aquilo.
Desse modo quero abrir espaço para uma paixão maior ou para uma prática diferente. Ideias dão permissão — e quero dar permissão a um sentimento e a uma prática diferentes.
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Digo isso quando você está dizendo aquilo não só porque os escritores são, às vezes, adversários profissionais. Não só para compensar o inevitável desequilíbrio ou unilateralidade de qualquer prática dotada do caráter de uma instituição — e a literatura é uma instituição —, mas porque a literatura é uma prática enraizada em aspirações intrinsecamente contraditórias.
Digo isso quando você está dizendo aquilo não só porque os escritores são, às vezes, adversários profissionais. Não só para compensar o inevitável desequilíbrio ou unilateralidade de qualquer prática dotada do caráter de uma instituição — e a literatura é uma instituição —, mas porque a literatura é uma prática enraizada em aspirações intrinsecamente contraditórias.
Minha opinião é que qualquer explicação da literatura é falsa — ou seja, redutora; meramente polêmica. Para falar de forma verdadeira sobre literatura, é preciso falar por meio de paradoxos.
Assim, toda obra de literatura importante, que merece o nome de literatura, encarna um ideal de singularidade, de uma voz singular. Mas a literatura, que é uma acumulação, encarna um ideal de pluralidade, de multiplicidade, de promiscuidade.
Toda ideia de literatura que podemos ter — literatura como engajamento social, literatura como busca de intensidades espirituais privadas, literatura nacional, literatura mundial — é, ou pode tornar-se, uma forma de deleite espiritual, vaidade ou autocongratulação.
A literatura é um sistema — um sistema plural — de padrões, ambições, lealdades. Parte da função ética da literatura é a lição do valor da diversidade.
Claro, a literatura deve agir dentro de fronteiras. (Como todas as atividades humanas. A única atividade sem fronteiras é estar morto.) O problema é que as fronteiras que a maioria das pessoas quer traçar sufocariam a liberdade da literatura de ser o que ela pode ser, com toda a sua inventividade e capacidade de se agitar.
Vivemos numa cultura empenhada em unificar as cobiças, e uma das línguas que compõem a vasta e gloriosa multiplicidade de idiomas do mundo, aquela em que falo e escrevo, é agora a língua dominante. O inglês passou a desempenhar, numa escala mundial e para populações muito maiores dentro dos países do mundo, um papel semelhante ao desempenhado pelo latim na Europa medieval.
Porém, como vivemos numa cultura cada vez mais global e transnacional, estamos também atolados em demandas cada vez mais fragmentadas, feitas por tribos reais ou auto-instituídas há pouco tempo. As antigas ideias humanísticas — da república das letras, da literatura do mundo — estão sob ataque em toda parte. Para alguns, elas parecem ingênuas e marcadas por sua origem no grande ideal europeu — alguns diriam ideal eurocêntrico — de valores universais.
As ideias de “liberdade” e de “direitos” sofreram uma degradação chocante nos anos recentes. Em muitas comunidades, os direitos coletivos têm mais peso do que os direitos individuais.
A esse respeito, o que os criadores de literatura fazem pode, implicitamente, fomentar a credibilidade da expressão livre e dos direitos individuais. Mesmo quando os criadores de literatura consagraram a sua obra em favor de tribos ou comunidades a que pertencem, sua realização como escritores depende de conseguir transcender esse objetivo.
As virtudes que tornam um dado escritor importante ou admirável podem, todas elas, ser localizadas no âmbito da singularidade da voz do escritor.
Mas tal singularidade, cultivada em particular e fruto de um longo aprendizado na reflexão e na solidão, é constantemente testada pelo papel social que os escritores se sentem chamados a desempenhar.
Não questiono o direito de um escritor empenhar-se em debates sobre questões públicas, de assumir causas comuns e exercitar a solidariedade com pessoas que pensem como ele.
Tampouco quero dizer que tais atividades levam o escritor para muito longe do local interior, solitário, excêntrico, onde se faz a literatura. O mesmo acontece com quase todas as outras atividades que constituem a vida.
Mas uma coisa é participar voluntariamente, movido por imperativos de consciência ou de afeição, do debate público e da ação pública. Outra coisa é emitir opiniões — tiradas moralistas — sob encomenda.
Não: Estou farto de tudo. Mas sim: A favor disso, contra aquilo.
Porém o escritor não deve ser uma máquina de opinar. Como disse um poeta negro do meu país, quando criticado por outros afro-americanos por não escrever poemas sobre as crueldades do racismo, “um escritor não é uma dessas maquininhas em que a gente escolhe a música que vai tocar”.
A primeira tarefa do escritor é não ter opiniões, mas dizer a verdade... e recusar-se a ser cúmplice de mentiras e de informações falsas. Literatura é o lar da nuance e da oposição às vozes da simplificação. A tarefa do escritor é tornar mais difícil acreditar nos saqueadores da mente. A tarefa do escritor é nos fazer ver o mundo como é, repleto de muitas e diferentes demandas, partes, experiências.
É tarefa do escritor retratar as realidades: as realidades sórdidas, as realidades que causam enlevo. É da essência da sabedoria fornecida pela literatura (a pluralidade da realização literária) ajudar-nos a compreender que, o que quer que esteja acontecendo, sempre se passa algo mais.
Sou assombrada por esse “algo mais”.
Sou assombrada pelo conflito entre os direitos e os valores que prezo. Por exemplo, às vezes, dizer a verdade não favorece a justiça. Às vezes, favorecer a justiça pode acarretar a supressão de boa parte da verdade.
Muitos dos mais notáveis escritores do século XX, em sua atividade como vozes públicas, foram cúmplices da supressão da verdade a fim de favorecer aquilo que entendiam ser (e era, em muitos casos) causas justas.
Minha visão pessoal é de que, se eu tiver de escolher entre a verdade e a justiça — claro, não quero escolher —, escolherei a verdade.
* * *
São três coisas diferentes: falar, o que estou fazendo agora; escrever, aquilo que me confere o direito que eu tiver a este prêmio incomparável; e ser, ser uma pessoa que acredita na ação solidária com os outros.
Como disse Roland Barthes, certa vez: “Quem fala não é quem escreve e quem escreve não é quem é”.
E é claro que tenho opiniões, opiniões políticas, algumas formadas com base na leitura e na discussão, e na reflexão, mas não na experiência direta. Permitam-me compartilhar com os senhores duas de minhas opiniões — opiniões bastante previsíveis, à luz das atitudes públicas que tenho tomado em assuntos sobre os quais possuo algum conhecimento direto.
Creio que a doutrina da responsabilidade coletiva, como um argumento para a punição coletiva, nunca é justificada, nem militar, nem eticamente. Refiro-me ao emprego de um poder de fogo desproporcional contra civis, a demolição de suas casas e a destruição de seus pomares e bosques, a supressão dos seus meios de vida e do seu direito a um emprego, à escola, aos serviços médicos, livre acesso às cidades e comunidades vizinhas... tudo como castigo por uma atividade militar hostil que pode estar ou não nos arredores da área habitada por esses civis.
Creio também que não pode haver paz aqui antes que a implantação de comunidades israelenses nos territórios seja suspensa e que depois — mais cedo ou mais tarde — sejam desmanteladas essas colônias, com a retirada das unidades militares lá acumuladas com a finalidade de protegê-las.
Aposto que essas duas opiniões minhas são compartilhadas por muitos aqui neste salão. Para usar uma antiga expressão americana, desconfio que estou pregando para convertidos.
Mas, como escritora, defendo essas duas opiniões? Ou não as defendo como uma pessoa de consciência e depois uso minha posição como escritora para somar minha voz à de outros, dizendo a mesma coisa? A influência que um escritor pode exercer é puramente ocasional. Hoje, é um aspecto da cultura da celebridade.
Há algo de vulgar na disseminação pública de opiniões sobre assuntos a respeito dos quais não se tem um conhecimento direto e amplo. Se falo do que não sei, ou só sei por alto, será um mero tráfico de opiniões.
Digo isso como uma questão de honra, para voltar ao princípio. A honra da literatura. O projeto de ter uma voz individual. Escritores sérios, criadores de literatura, não devem apenas exprimir-se de forma diferente do discurso hegemônico dos meios de comunicação de massa. Eles devem estar em oposição à lengalenga comunal dos telejornais e dos programas de entrevistas.
O problema com as opiniões é que a pessoa fica presa a elas. E toda vez que os escritores agem como escritores, sempre veem... mais.
O que quer que exista, existe sempre mais. O que quer que esteja acontecendo, algo mais está acontecendo, também.
Se a literatura em si, esse grande projeto que foi conduzido (até onde podemos abarcar) ao longo de três milênios, corporifica uma sabedoria — e eu creio que sim e que isso constitui o cerne da relevância que atribuímos à literatura —, é por ela demonstrar a natureza múltipla de nossos destinos privados e comuns. A literatura vai nos lembrar que pode haver contradições, às vezes conflitos irredutíveis, entre os valores que mais prezamos. (Eis o significado de “tragédia”.) Ela vai nos lembrar do “também” e do “algo mais”.
A sabedoria da literatura é inteiramente antitética às opiniões. “Nada é minha última palavra em nenhum assunto”, disse Henry James. Fornecer opiniões, mesmo opiniões corretas — sempre que pedirem —, deprecia aquilo que romancistas e poetas fazem de melhor, que é patrocinar a reflexão, buscar a complexidade.
A informação jamais substituirá a iluminação. Mas algo que parece informação, exceto por ser melhor do que ela — refiro-me à condição de ser informado; refiro-me ao conhecimento concreto, específico, detalhado, historicamente denso, conhecimento de primeira mão —, é o pré-requisito indispensável para um escritor exprimir opiniões em público.
Deixemos que os outros, as celebridades e os políticos, façam pouco de nós; mintam. Se ser escritor e ser também uma voz pública pudesse ter alguma serventia maior, seria para que os escritores considerassem que a formulação de opiniões e juízos é uma responsabilidade difícil.
Um outro problema com opiniões. Elas são fatores de auto-imobilização. O que os escritores fazem deveria nos libertar, nos sacudir. Abrir avenidas de compaixão e de interesses novos. Lembrar-nos que podemos, simplesmente podemos, aspirar a ser diferentes, e melhores, do que somos. Lembrar-nos que podemos mudar.
Como disse o cardeal Newman: “Num mundo mais elevado, é diferente, mas aqui embaixo viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado muitas vezes”.
E o que entendo pela palavra “perfeição”? Não tentarei explicar, mas apenas dizer: a Perfeição me faz rir. Não de modo sarcástico, apresso-me em acrescentar. Com alegria.
Sou grata por ter recebido o prêmio Jerusalém. Aceito-o como uma honraria para todos aqueles comprometidos com o desígnio da literatura. Aceito-o em homenagem a todos os escritores e leitores em Israel e na Palestina que lutam para criar uma literatura feita de vozes singulares e da multiplicidade de verdades. Aceito o prêmio em nome da paz e da reconciliação das comunidades feridas e temerosas. A paz necessária. Concessões necessárias e disposições novas.
Anulação dos estereótipos. A necessária persistência do diálogo. Aceito o prêmio — este prêmio internacional, patrocinado por uma feira internacional de livros — como um evento que honra, acima de tudo, a república internacional das letras.
Susan Sontag, discurso ao receber o prêmio Jerusalém em "Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos"
Susan Sontag, discurso ao receber o prêmio Jerusalém em "Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos"

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