domingo, 29 de janeiro de 2017

Em cidade protegida pela Constituição

Em resposta à crise das penitenciárias, erra o governo, em parte, como erraram os governos anteriores e os estaduais. É que o lugar do problema não está no presídio nem na fronteira. Está distribuído no território urbano brasileiro.
Acerta o governo, em parte, ao tratar o tema como questão nacional. Mas ela não se resolverá com planos de segurança. Como nos diz a experiência, eles são importantes, mas parciais.

Há 40 anos o Brasil tinha metade da população e um terço dos domicílios. Embora tenha sido espetacular o esforço brasileiro ao consolidar nesse período um sistema urbano com 5.500 cidades, 20 metrópoles e duas megacidades, de fato, nossas cidades apresentam extensas áreas sem urbanização e escassez de serviços públicos. Produzimos edificações de alta qualidade, mas a precariedade e a irregularidade são majoritárias no parque imobiliário nacional. Demos ênfase ao específico e deixamos à margem o genérico.


Os governos não acompanharam o crescimento das cidades. Desassistidos, bairros e regiões urbanas ficavam pouco a pouco sob domínio territorial de traficantes, que expandiam seus negócios apoiados em armas cada vez mais potentes.

Outras organizações criminosas, sem a droga como base, também se estruturaram territorialmente. Ambos os modelos têm lucros controlando ampla rede comercial que inclui o transporte alternativo, a distribuição de gás engarrafado, o mercado imobiliário, extrapolando para o embricamento no sistema político.

É no domínio territorial que reside a força da bandidagem, como visto esta semana na Cidade Alta e em Irajá, no Rio; e também no DF, em Salvador, em Natal, entre outras metrópoles. Desse domínio resultam a violência e a mortandade, de centenas de pessoas nos presídios e de dezenas de milhares nas ruas de nossas cidades.

O lugar do problema, portanto, é a ausência de Estado em partes significativas do território nacional. O seu encaminhamento depende de uma questão ético-política fundamental: o reconhecimento do direito de todo cidadão brasileiro de viver em cidade integralmente protegida pela Constituição.

A presença do Estado não é retórica. Significa prestação dos serviços públicos, inclusive o de segurança, regularização da propriedade, controle urbanístico e edilício. Há que ter lei do Estado, não da gangue, como em Ipanema, nos Jardins ou no Corredor da Vitória — local do caso La Vue, do ex-ministro. É além de escola e de hospitais. Na ausência, bairros pobres e favelas continuarão dominadas pelo “poder paralelo” e como cidadela de facções e milícias.

Mas, se historicamente o Estado está fora, como poderá de imediato estar dentro?

A cidade brasileira é um ativo fundamental ao desenvolvimento social e econômico. Há de ser planejada, ordenada, cuidada com estruturas funcionais permanentes pelo poder local. A discricionariedade dos governantes, com seus projetos de ocasião, precisa ser substituída por políticas públicas de médio e longo prazos onde a redução da desigualdade intraurbana seja o cerne. Também o âmbito federal tem grandes responsabilidades. Seus programas e políticas têm que ser consequentes, com conceitos e objetivos claros. É preciso que o Ministério das Cidades diga a que veio.

Veja-se a habitação. Mesmo com o alto déficit ambiental e sanitário das cidades, a urbanização de loteamentos e favelas foi abandonada, apesar de importante experiência na década de 1990. Os investimentos federais priorizaram a construção de conjuntos residenciais, em geral, tal como na ditadura, segregados da cidade e segregadores das populações pobres — logo tomados pela bandidagem. Ao invés de servirem de libertação, serviram à dominação.

Se o destino é de país desenvolvido, precisamos mudar o rumo. Planos nacionais de segurança, sim, são importantes; e há uma emergência. Mas sozinhos não serão efetivos. É preciso política nacional de recuperação de todo o território nacional para o domínio da Constituição — uma política de cidadania.

O país pede estruturas permanentes e competentes que tratem o urbano como função de Estado.

Sérgio Magalhães

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