Em um país onde a carteirada é quase uma instituição e o “sabe com quem está falando” ainda é prática corrente, discutir abuso de autoridade seria benéfico. A rigor, muito mais útil para o cidadão comum do que para os poderosos. Especialmente em um ambiente em que os fortes são muitíssimo fortes - protegidos por foro privilegiado, que engloba políticos e altos servidores do Executivo, Legislativo e Judiciário, e tribunais especiais, caso de militares e policiais --, e os fracos, fraquíssimos, até por não ter recursos para pagar advogados.
Mas longe de querer “coibir e punir condutas que escapem ao Estado democrático de direito, ao pluralismo e à dignidade da pessoa”, como o presidente do Senado, Renan Calheiros, expressa na justificativa de seu projeto de lei contra abuso de autoridade, os tais poderosos só passaram a se preocupar com o dito abuso depois de se tornarem alvo de escutas, prisões temporárias e preventivas, condenações. Em suma, até o Mensalão cutucá-los e a operação Lava-Jato seguir o rastilho de pólvora espalhado por delatores, tudo prestes a explodir.
Na semana passada Renan colheu duas derrotas. Perdeu por 44 a 14 a votação que pretendia conferir urgência ao projeto contra a corrupção aprovado pela Câmara dos Deputados, no qual se anexaram punições a magistrados e procuradores. E virou réu no Supremo, por crime de peculato, por 8 votos a 3. Na próxima terça-feira pretende votar o seu projeto sobre abuso - um texto com 45 artigos, entre eles alguns ainda mais draconianos do que o aprovado na Câmara.
Rechaçado pelo Ministério Público Federal (MPF), autor das 10 medidas contra a corrupção encaminhadas ao Parlamento como projeto popular com o aval de mais de dois milhões de signatários, o projeto que saiu da Câmara é um Frankenstein. Aprovado na fatídica madrugada em que os brasileiros choravam pelos chapecoenses mortos em um acidente aéreo bárbaro, o texto cravou de morte o coração da proposta e acrescentou punições a juízes e procuradores, algo completamente fora do corpo e do script.
O país reagiu diante do monstro construído: bradou nas redes sociais, perturbou o WhatsApp dos deputados, convocou um panelaço para o horário nobre e gente para as ruas neste domingo.
Renan não se fez de rogado. Obcecado para punir quem pode por direito puni-lo, tentou atropelar o processo legislativo. Perdeu. Mas imagina que pode dar o troco. Não nas medidas contra a corrupção, que tanto ele quanto a Câmara preferem ver adiadas para as calendas agora que já não podem mais incluir nelas a anistia ao caixa 2, mas na votação de seu projeto. E com especial apreço pelo artigo 30, que pune com pena de reclusão de um a cinco anos quem der “início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada”, sem que se diga o que vem a ser a tal “causa fundamentada”.
A urgência de muitos dos políticos – um terço dos 81 senadores e 148 dos 513 deputados são alvo de algum tipo de inquérito ou ação penal – faz com que o país não consiga ter uma lei contra o abuso de autoridade que realmente sirva à cidadania. E abusos não faltam. Não raro sem punição. Quase 50 juízes condenados por corrupção tiveram penas pífias – perda do cargo e afastamento com direito a aposentadoria integral – e poucos promotores acabaram atrás das grades depois de crimes severos, incluindo homicídio. Políticos com mandato na cadeia também se contam nos dedos.
Juízes e procuradores não são infalíveis – ninguém é. Erram e até abusam. Mas, como disse o juiz Sérgio Moro no plenário do Senado, “não podem ser intimidados por interpretações ou juízo de valor a respeito das provas proferidas nos processos sob sua responsabilidade”. Ao mesmo tempo, não há lógica em se imaginar provas ilícitas válidas em um processo ou o horror de pessoas delatando outras para auferir vantagens financeiras – o “reportante do bem” -- como pretendem os autores das 10 medidas contra a corrupção.
Por interesses próprios e inconfessáveis, por ignorância, oportunismo ou má-fé, esse debate tão necessário ao país se faz em favor de quem quer se livrar da Justiça. E se deixa aprisionar na paixão maniqueísta entre quem é contra e a favor das 10 medidas do MPF, contra ou a favor de se coibir abusos. Como na síndrome, a bipolaridade refuga o bom senso.
Na semana passada Renan colheu duas derrotas. Perdeu por 44 a 14 a votação que pretendia conferir urgência ao projeto contra a corrupção aprovado pela Câmara dos Deputados, no qual se anexaram punições a magistrados e procuradores. E virou réu no Supremo, por crime de peculato, por 8 votos a 3. Na próxima terça-feira pretende votar o seu projeto sobre abuso - um texto com 45 artigos, entre eles alguns ainda mais draconianos do que o aprovado na Câmara.
Rechaçado pelo Ministério Público Federal (MPF), autor das 10 medidas contra a corrupção encaminhadas ao Parlamento como projeto popular com o aval de mais de dois milhões de signatários, o projeto que saiu da Câmara é um Frankenstein. Aprovado na fatídica madrugada em que os brasileiros choravam pelos chapecoenses mortos em um acidente aéreo bárbaro, o texto cravou de morte o coração da proposta e acrescentou punições a juízes e procuradores, algo completamente fora do corpo e do script.
O país reagiu diante do monstro construído: bradou nas redes sociais, perturbou o WhatsApp dos deputados, convocou um panelaço para o horário nobre e gente para as ruas neste domingo.
Renan não se fez de rogado. Obcecado para punir quem pode por direito puni-lo, tentou atropelar o processo legislativo. Perdeu. Mas imagina que pode dar o troco. Não nas medidas contra a corrupção, que tanto ele quanto a Câmara preferem ver adiadas para as calendas agora que já não podem mais incluir nelas a anistia ao caixa 2, mas na votação de seu projeto. E com especial apreço pelo artigo 30, que pune com pena de reclusão de um a cinco anos quem der “início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada”, sem que se diga o que vem a ser a tal “causa fundamentada”.
A urgência de muitos dos políticos – um terço dos 81 senadores e 148 dos 513 deputados são alvo de algum tipo de inquérito ou ação penal – faz com que o país não consiga ter uma lei contra o abuso de autoridade que realmente sirva à cidadania. E abusos não faltam. Não raro sem punição. Quase 50 juízes condenados por corrupção tiveram penas pífias – perda do cargo e afastamento com direito a aposentadoria integral – e poucos promotores acabaram atrás das grades depois de crimes severos, incluindo homicídio. Políticos com mandato na cadeia também se contam nos dedos.
Juízes e procuradores não são infalíveis – ninguém é. Erram e até abusam. Mas, como disse o juiz Sérgio Moro no plenário do Senado, “não podem ser intimidados por interpretações ou juízo de valor a respeito das provas proferidas nos processos sob sua responsabilidade”. Ao mesmo tempo, não há lógica em se imaginar provas ilícitas válidas em um processo ou o horror de pessoas delatando outras para auferir vantagens financeiras – o “reportante do bem” -- como pretendem os autores das 10 medidas contra a corrupção.
Por interesses próprios e inconfessáveis, por ignorância, oportunismo ou má-fé, esse debate tão necessário ao país se faz em favor de quem quer se livrar da Justiça. E se deixa aprisionar na paixão maniqueísta entre quem é contra e a favor das 10 medidas do MPF, contra ou a favor de se coibir abusos. Como na síndrome, a bipolaridade refuga o bom senso.
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