Naufragou a ideia de que líderes providenciais e iluminados pela graça divina poderiam salvar o povo, mudar a ordem vigente e combater as injustiças. O exemplo mais notável desse fracasso messiânico é a Venezuela, país que Hugo Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro conseguiram levar à bancarrota. Outros lugares, como a Bolívia ou a Nicarágua, também lidam com presidentes salvadores da pátria que deixaram para trás as suas possibilidades de sucesso e insistem em se manter dominantes. No Brasil, “o socialismo do século 21”, como Chávez classificou o sistema que proliferou na América Latina em um passado recente, se transformou em uma cleptocracia em que sonhos de prosperidade se converteram em uma realidade decadente.
“A política obedece a um movimento pendular, o populismo teve um momento importante na região a partir do final dos anos 1990, sustentado em um ideário progressista, mas esse modelo entrou em crise”, afirma o cientista político Rodrigo Gallo, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). “Um dos problemas é que a insistência de alguns líderes carismáticos em se reeleger acaba sendo nociva para o próprio sistema republicano.” Para se perpetuarem no poder, esses governantes tentam mudar regras eleitorais, asfixiar a oposição e acabam descambando para o autoritarismo. A crença de que estão acima do bem e do mal os leva a recusar a derrota política, ainda que evidente. Na Venezuela, Maduro, hoje sem qualquer apoio de outros países, tenta emplacar eleições ilegítimas e sufocar a assembléia oposicionista, além de reprimir protestos nas ruas e praticamente expulsar a população do país, por falta de trabalho, alimentos e outros insumos básicos. Mesmo na porta da prisão, Lula insiste em querer ser candidato e mantém a crença de que só ele pode levar o Brasil a um futuro grandioso. Apesar de manterem alguma base popular, nomes como Lula e Maduro perderam definitivamente a simpatia da maioria dos eleitores.
O boliviano Evo Morales é um dos casos mais representativos do fim desse novo ciclo populista latino-americano. Por suas origens étnicas, Morales chegou ao poder de uma forma heroica, identificado com a população pobre e disposto a lutar pelos direitos dos grupos indígenas. Seu primeiro governo foi em 2006 e ele já está no quarto mandato. Apesar de ainda repousar sobre os louros do crescimento econômico do país, sofreu uma dura derrota eleitoral em fevereiro do ano passado, em um claro sinal contra sua vontade de se perpetuar no poder. A maioria dos bolivianos, 51,3%, rejeitou em referendo uma reforma constitucional que permitiria ao atual presidente se candidatar a um quarto mandato. Diante do novo quadro, Morales terá que rever sua estratégia para garantir seu futuro político a partir de 2020, quando termina o atual governo. Outro país em que há um arrefecimento do modelo populista de esquerda é o Equador, onde Rafael Correa, um seguidor do bolivarianismo venezuelano que governou o país entre 2007 e 2017, deixou o poder, além de uma enorme dívida pública, mas não se conformou com isso. Virou o principal opositor do presidente Lenin Moreno, que ajudou a eleger. Desde Bruxelas, onde se instalou, Correa passou a atacar Moreno com a acusação de que ele está destruindo o projeto político erguido nos últimos dez anos.
“A grande razão da crise do populismo na América Latina foi a queda do preço das commodities, a partir de 2011”, afirma o cientista político e professor do Insper, Fernando Schuler. “Com a diminuição da riqueza, houve uma deterioração das políticas públicas e um enfraquecimento dos programas sociais.” Quando chega ao fim, o ciclo de poder populista normalmente deixa um déficit fiscal crônico, causa fuga de investimentos e expõe gargalos econômicos que não foram superados, além de deixar as instituições em frangalhos. Caso típico é o da Argentina, onde a vitória do empresário Maurício Macri, em 2015, representou com clareza um esgotamento do modelo populista local, o kirchnerismo, fundado por Néstor Kirchner e levado adiante, depois de sua morte, em 2010, por sua esposa, Cristina. A perda do controle sobre a economia também está na base do impeachment sofrido pela ex-presidente Dilma Rousseff, eleita no vácuo da popularidade de Lula. No segundo mandato de Dilma, o Brasil entrou na mais dura recessão desde o início do século 20. A maior parte do crescimento econômico realizado na década passada foi neutralizada pelos erros posteriores na condução do país. Os programas sociais do governo começaram a perder verbas a partir de 2016. O Programa Minha Casa, Minha Vida perdeu 74% das verbas orçamentárias na comparação com 2015. O Bolsa Família encolheu 5,7% no período.
Enquanto há programas sociais e a máquina do governo funciona a pleno vapor, a vontade populista se impõe, mas quando eles mínguam, a população se torna mais crítica e menos paciente com o personalismo de seus líderes. “A longo prazo é muito difícil a convivência do populismo com a democracia”, reflete Schuler. “O populismo é autodestrutivo e precisa do gesto autoritário”. Apoiados em certa fantasia mística, esses governantes acreditam que representam a vontade geral da nação e que serão capazes de ficar ao lado do povo na sua luta contra as elites exploradoras. Para se garantir, tratam de ocupar o Estado e aparelhar as instituições para que funcionem a seu favor. O ex-guerrilheiro Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, é um desses governantes messiânicos que descamba para o autoritarismo. Ortega foi presidente da Nicarágua entre 1985 e 1990 e voltou ao cargo em 2006. Desde então, está à frente do governo – foi reeleito em 2011 e 2016. Para isso, ele praticamente acabou com a oposição. Antes de ganhar a eleição pela última vez, conseguiu expulsar 16 deputados oposicionistas do Congresso, todos do Partido Liberal Independente (PLI), e impôs ao país, na prática, um regime de partido hegemônico, dominado pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Na ocasião, o escritor e ex-vice-presidente Sergio Ramirez, principal intelectual nicaraguense, disse que há no país “um socialismo em que a pobreza não diminui e o número de milionários só aumenta.”
O populismo do século 21 tem relação direta com outros movimentos políticos que aconteceram no século passado na América Latina, liderados por ditadores como Getúlio Vargas, no Brasil, Juan Domingo Perón, na Argentina, ou mesmo Augusto Pinochet, que governou o Chile entre 1973 e 1990, e associados ao fenômeno regional conhecido com caudilhismo. Vargas e Perón tiveram seu poder robustecidos por um forte apoio sindical e conquistaram a confiança dos trabalhadores. Perón foi eleito pela primeira vez em 1946, depois de se destacar no cargo de Secretário do Trabalho e Segurança Social e adotar medidas populares, como a criação dos tribunais trabalhistas e a ampliação das verbas rescisórias para todos os trabalhadores. Ganhou mais duas eleições posteriormente. Vargas foi ditador de 1937 a 1945 e criou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ganhou o título de “pai dos pobres”.
A diferença maior entre as duas gerações de populistas é que antes as sociedades eram mais fechadas, não havia uma cultura democrática consolidada e os governos tinham condições de controlar as informações e se impor mais facilmente de maneira autoritária. Hoje a situação é diferente. Seja como for, esses líderes populistas costumam chegar ao poder de uma forma heróica e terminar seus dias de maneira melancólica.
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