Como os “amigos de praia”, os “de bar” contam muito no pouco tempo que dispõem fora da casa e da família. Alforriados, eles competem escudados por suas gloriosas fantasias reveladoras de desejos que, como feridas expostas, esperam por mercúrio cromo, gaze e esparadrapo. Foi nesse ambiente quixotesco, animado por narrativas fantásticas, que eu encontrei essa nobre figura.
Melinho é um afastado professor da faculdade de Ciências Ocultas e Letras Apagadas (vulgarmente chamadas de “Ciências Sociais”) por ter assediado uma aluna. Fiquei chocado, porque Melo Reis da Costa Santos é um careca feio de pernas finas, e tem 90 anos!
O escândalo, é lógico, aconteceu quando os bichos falavam e os homens “cantavam” em vez de agredir as mulheres. Tempos em que os asnos eram proibidos de governar e — como nada é perfeito — as mulheres obedeciam. Naqueles tempos miológicos, um professor Melo dava aula barbeado, de terno e gravata e tinha plena consciência de seu poder feiticeiro sobre seus alunos, tanto que, durante o processo e para horror do juiz narcisista que usava peruca e comia a tabeliã do fórum, Melo Costa admitiu-se culpado e forneceu detalhes que a própria vítima considerou incríveis, pois confirmavam sua culpa.
—Estava cego e agi de má-fé, não podia mentir — recorda Melinho. São histórias deste tipo que confirmam sua fama de estranho ou, quem sabe, de psicótico. Um sujeito em combate permanente (e vão) contra o logro, a desfaçatez, a hipocrisia, a malandragem e a mentira que estruturam do nosso sistema social tem que ser doido. No Brasil não há mentiras, é a mentira que mente por nós, proclama Melinho num fantasioso arrebatamento.
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Sempre que Melinho fala em social, cultural, ou estrutura, ele levanta o copo e olha significativamente para mim. Como — emenda ele bêbado e raivoso — sustentar uma imoral e permanente desigualdade por meio de um Estado (e de governos) que (como o rei de Portugal) “dão” capitania, foro, emprego e nobreza aos amigos e companheiros, legitimando que não se trabalhe, sem mentir? Como conviver com escravidão africana se imaginando cristão e liberal, sem ser hipócrita? Como ser esperto e ter como mapa uma malandragem de raiz cujo código, pouco discutido justamente por malandragem, é o familismo estruturante, sem afundar-se num paradoxo destrutivo?
Foram esses delirantes discursos de Melinho que lhe valeram o ambíguo e, no fundo, invejável título de “Melinho-Honesto”, de “Melo Implacável”. E, para alguns a pecha de Melinho reacionário, fascista e zangado.
Tudo porque Melinho não mente. É o único sujeito que conheci que jamais mentiu. Na sua casa as crianças jamais ouviram falar de cegonha, de político honesto e, a propósito, de Papai Noel.
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Nesta véspera de um pandêmico e solitário Natal, eu o encontrei no consultório de nosso oftalmologista, pois sofremos de uma degenerescência incurável da mácula.
— E aí Melinho, como vai a vista?
— Péssima! Aliás eu gostaria mesmo era de não ver o que enxergo...
— O estado do mundo e do Brasil...
— Veja o absurdo. Há vacinas, mas há um presidente com um óbvio desejo de morte. Ele procura desencontros. Eis um presidente que, contrariando o seu papel, aposta no anômalo; ou, como dizia o inventor da sociologia, o francês Émile Durkheim, na anomia.
Nenhuma sociedade — continuou Melinho agora como professor — elege a morte como valor ou meta. Sabe-se que a morte é inevitável pois é parte da vida. Morrer é, sem dúvida, normal, desde que — e esse é um ponto capital — seja evitada. Quando um presidente perturba o mais potente e exclusivo meio de cura, ele joga arrogante e irresponsavelmente contra a confiança dos que nele votaram o que, diga-se de passagem, não foi o meu caso, embora eu tenha consciência de que Bolsonaro&Filhos não chegou ao cenário da polícia nacional vindo do espaço sideral. Ele é cria de um sistema avesso a todas as éticas.
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“Duas pessoas — dizia o estoico Sêneca que teria trocado cartas com São Paulo — se combinam num piloto: uma ele compartilha com todos os outros passageiros, porque também ele é um passageiro; a outra, porém, é apenas dele porque ele é o piloto. Uma tempestade o atinge como passageiro, mas não o atinge enquanto piloto”.
Em seguida, Melinho acendeu um mortal cigarro, tragou demoradamente sua cachaça e disse com voz rouca e ranzinza de profeta:
— Aborreço muito por não mentir. Com 90 anos, eu — velho — mal consigo suportar a mim mesmo.
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Desejei um Feliz Natal ao meu velho amigo. E a vocês, leitores generosos e pacientes, vítimas das mentiras do mundo.
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