A comunicação direcionada a um grupo da sociedade, mas como se tal fosse o povo brasileiro ele mesmo, fundamenta-se na própria fé totalitária que o bolsonarismo prega: a do poder popular, soberano, que se confunde com o líder populista até não ser mais possível distinguir um de outro — o que validaria o aterramento da democracia representativa. É o projeto.
Vejamos o caso do Orçamento impositivo —o novo combustível para a indústria de conflitos destinados a enfraquecer o Parlamento. No curso de 2019, a matéria teve adesão quase absoluta dos bolsonaristas; isto a ponto de merecer — ainda em março — palavras de exaltação de Eduardo Bolsonaro. Era, segundo o deputado, vitória do Legislativo e da independência entre poderes. Tratava-se, então, das emendas de bancada — rubrica que transferia parte do orçamento às mãos do Congresso. O governo avalizara.
Nada mudaria em dezembro, quando da votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, ocasião em que se aprovou o hoje controverso controle parlamentar sobre a execução das emendas de relator — os R$ 30 bilhões cujo domínio está em xeque. De minha parte, penso ser mesmo — esse ponto específico — avanço excessivo, gerador de desequilíbrio, do Parlamento sobre o Orçamento.
Mas o que posso fazer senão falar?
A hoje indignada bancada bolsonarista, no entanto, votou, caladinha, a favor da lei — com parcas exceções, entre as quais não Eduardo Bolsonaro. Ele, líder do PSL, poderia ter proposto um destaque e enfrentado a porção ora nociva — de súbito tornada mecanismo para chantagem contra o governo — da LDO; mas não o fez. E não o fez, só pode ser isto, por incompetência — por não saber o que se votava.
Fato consumado, lei aprovada, Executivo estrangulado, veto do presidente anunciado, o governo correu, por meio da dupla general Ramos e Paulo Guedes, para montar um plano B, um acordo que minimizasse os prejuízos e partilhasse aquele montante entre Congresso e ministérios — acordo que elementos do mesmo governo não hesitariam em dinamitar.
O governo funciona assim: na planície, sem publicidade, costura e negocia, lançando mão do que se poderia, segundo critérios bolsonaristas, chamar de toma lá dá cá; no Planalto, contando com a multiplicação desinformante de seus milicianos digitais, nega o que pactuou, trai a palavra empenhada, joga pra galera e ataca aquele com quem (legitimamente) se acertara. No caso, o Parlamento. Tem sido assim desde o começo.
É o que permite ao governo — o que mais liberou emendas parlamentares em primeiro ano de gestão da história — propagandear-se como vítima da conspiração de um Congresso chantagista. Para essa distorção dos fatos servem figuras como general Heleno, aquele que disparou o gatilho da nova rodada de intimidação do Legislativo; aquele, chefe do GSI, que teve — sem querer — declarações de afronta ao Congresso captadas por uma transmissão ao vivo gerada pelo próprio governo. Ok. Acredito.
Ato contínuo, decerto sem qualquer coordenação, lá estavam os movimentos de rua bolsonaristas convocando para protesto contra o Parlamento. Não demorou até que montagens com fotos de generais — vendendo a ideia de intervenção militar — circulassem como peças de divulgação das manifestações. E não tardaria para que o presidente compartilhasse vídeos chamando para os atos — seguramente (né?) sem qualquer intenção de que sua mensagem fosse vazada à imprensa. Foi.
Teve início, então, um novo ciclo de imposturas sobrepostas, de ataque a jornalistas — e de exposição da misoginia que caracteriza o bolsonarismo. Sob o estado de guerra em que se move um Bolsonaro em campanha permanente, tudo vale. É o que explica — mesmo com seus embustes descortinados pela exibição da verdade — haver dobrado a aposta na mentira. Ele sabe o que quer — nada a ver com as reformas estruturais de que o país precisa — e para quem fala.
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