terça-feira, 16 de março de 2021

O jumento e a vacina

Há uns dez dias, um pequeno avião do governo da Bahia foi decolar de um aeroporto em Salvador e atropelou um jumento. Nem o animal nem o piloto se machucaram seriamente, mas o avião sofreu avarias e sua função, transportar doses da vacina contra a Covid-19 para o interior do estado, teve de ser executada por outro.

Nada mais metafórico do Brasil de hoje: o símbolo da estultícia, o pobre jumento — não sei por que razão ganhou a fama de pouco inteligente, ignorante, incapaz, mas vou aceitá-la sem crítica —, de um lado, e o da sabedoria e diligência humanas, a vacina, de outro. Aquele retarda o voo deste, ou seja, o acidente revela a encruzilhada civilizatória em que estamos. A imagem de um abismo logo adiante não serve mais ao Brasil, pois já demos o passo adicional e agora voamos em queda. Ainda que demore, pousaremos não exatamente no território da morte, mas no Tártaro, lá onde os deuses gregos supliciavam incorrigíveis como Sísifo. Repetir diariamente tarefas pesadas e inúteis é o que nos espera.


Relacionar o atual governo à irracionalidade do jumento (ou do gado) pode nos confortar, mas, ao fazê-lo, deixamos de reconhecer a inteligência dos senhores no poder. Pois eles têm inteligência, grande até; perversa, de fato. São conluiados com a morte. Se depois das grandes guerras, um ideal de civilidade e respeito às diferenças parece ter se transformado em um valor universal e desejável — ainda que pesem todas as atrocidades e guerras praticadas depois —, sempre houve aqueles que, por uma razão ou outra, continuaram a entender que governar é matar. Inventam inimigos em países vizinhos ou distantes, senão no próprio, onde passam a perseguir os que incomodam pela ancestralidade (os índios), pela potência (os negros), pela luta por independência e igualdade (as mulheres), pela subversão dos valores tradicionais (a comunidade LGBTQIA+) ou pela inconformidade (os artistas).

Quem nos comanda atualmente cultiva uma mentalidade mórbida como a descrita. A morte de quase trezentas mil pessoas (número aproximado de habitantes de Petrópolis, a nonagésima cidade, em termos de população, do Brasil, que conta com 5570 municípios), numa pandemia, não aflige os que militam na necropolítica, decerto os contenta. Queimar florestas é um espetáculo bonito. Dar as costas para a cultura é um ato de preservação de valores. Não faltam exemplos de como se compadecem da destruição.

Tenho um amigo que é exemplo dos que acreditam piamente no diálogo como forma de superar diferenças. Coerente com isso, o diálogo tem sido seu instrumento de ação profissional e política, papel que, aliás, desempenha muito bem. Por isso, fiquei surpreso com uma de suas publicações no Twitter. Diante da ruína civilizatória pela qual passamos, ele disse ter compreendido — não como um estudioso de um período passado, mas como alguém que experimenta, adulto e crítico, a dureza e periculosidade de seus dias — a opção de parte da juventude dos anos de 1960 pela luta armada. Meu amigo em nenhum momento defende que peguemos em arma, mas, com a violência e o autoritarismo inconsequente à solta, ele conclui, a escolha pelo combate no campo do inimigo (a violência) não é destituída de racionalidade. Eu acrescentaria: é exatamente isso que o novo poder quer de nós, portanto, tratemos de decepcioná-lo. Mais Gandhis, menos — como são muitos os que ocupam o espaço oposto ao de um pacifista, não cito nomes, preferindo a imagem talvez distorcida de outro animal — abutres.
Alexandre Brandão

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