O Brasil parece estar completamente abstraído do Bicentenário da Independência. Como explicar esse alheamento?
A celebração dos 200 anos da chegada da Corte ao Brasil, em 2008, foi quase nacional. O governo, à época, assumiu a liderança, o de hoje não se esforça muito. O ambiente do país, por sua vez, não está pra celebrações.
Era de se esperar que um governo de direita, mais apegado aos ideais nacionalistas, tivesse apostado mais na data, não?
Certamente. O presidente Jair Bolsonaro é de direita, mas é um bronco, totalmente inculto. Não tem nenhuma sensibilidade pra estas coisas, não dá valor.
O Brasil vive um ambiente de desistência cívica?
Há uma sensação de fracasso. Não temos como nos transformar numa grande potência. Como disse José Bonifácio, o sonho da Independência foi que, pelo tamanho e pela população, tínhamos condições de nos transformar num “grande império”. Mas quem conseguiu? A China. Qual país vindo da tradição portuguesa ou espanhola teve êxito? Isso faz com que comecemos a perguntar: o que deu errado?
Já tem respostas?
Honestamente, não. Que país construímos ou não construímos? Isso implica olhar pra frente. As desigualdades são escandalosas, somos o sétimo ou oitavo país mais desigual do mundo. O nível educacional melhorou, mas segue muito baixo. O desemprego é enorme. Cerca de 60 milhões de pessoas recebem auxílio federal. Crescendo a 2%, este país tem futuro? Pode ser a minha idade também, mas estou muito pessimista.
Mas não há nada nestes 200 anos da História do Brasil que possa servir de incentivo?
É sempre celebrado o Brasil não ter se fragmentado, tema do meu livro “A construção da ordem”. E assim se manteve por conta de D. João VI. Os portugueses não gostaram muito da vinda dele pra cá, mas foi um gesto político inteligente. Salvou-se a colônia, deu-se às capitanias brasileiras ponto de referência de legitimidade: “O rei está aqui”. Isto fez com que, bem ou mal, os movimentos separatistas se reduzissem, antes da Regência, a Pernambuco. Mais tarde, já havia um núcleo no Rio que derrotou outras tentativas de separação.
Manter a unidade de um país tão vasto e diverso é o maior sucesso do Brasil independente?
É uma pergunta que sempre me faço e não consigo responder. O que foi melhor? Permanecer esse monstro unido, ou teria sido melhor se separar em vários países? Um fator muito forte da identidade nacional é o tamanho gigante e as riquezas naturais do país, o “motivo edênico”. Ter orgulho do Brasil pela Amazônia, mas jamais por nossas lutas. Em matéria de memória, sofremos um Alzheimer coletivo. A unidade foi uma vantagem? Talvez sim. A língua é uma só.
Em 2017, o senhor já dizia ser lamentável o crescimento de uma “política de ódio” no Brasil. É um problema ao se discutir este país 200 anos depois?
Sem dúvida. Havia o mito da cordialidade brasileira. A capacidade de ódio aqui é grande, não como nos EUA, mas, certamente, como na América Ibérica. Um centro de debate é o racismo, ou racismo estrutural, palavra da moda. Que é muito mais violento nos EUA, mas a situação dos negros lá é muito melhor. Há uma classe média negra, empresários negros, universidades negras. Se formou uma elite negra, com poder.
Como o senhor vê a discussão da escravidão no Brasil hoje?
É uma dinâmica social. À medida que se consegue (avanço nos direitos), reduz-se o grau de violência. É inevitável certos movimentos sociais começarem mais violentos. Minha tolerância é grande, embora, obviamente, não concorde com tudo. Mas talvez seja a maneira de se reduzir a desigualdade, a discriminação.
A desigualdade é o que mais o preocupa no Brasil hoje?
Ela bloqueia o país. Quem ganha R$ 100 mil paga 27, 5% de imposto e quem recebe R$ 5 mil paga 27%, há pouca progressividade. Quando dei aula nos EUA, pagava 35%! Na Holanda, mais de 40%! O que me intriga é que vivemos em uma democracia, as pessoas votam. Mas o produto deste voto é um Congresso, uma elite, medíocre, preocupada com reeleição, em conseguir dinheiro, com o financiamento de milhões para os pleitos, mas não se passa legislação que afete desigualdade.
Mas o trabalhismo dos anos 1950, depois FH e Lula, não promoveram maior aproximação com os eleitores?
Vargas foi o primeiro a fazer uma legislação trabalhista e outras medidas importantes, mas sempre dependendo do Estado. E pagou com a vida pela ousadia. Aí veio a Guerra Fria e os nossos militares consideraram-se tutores do regime. Com FH e Lula, me pareceu que estávamos entrando num caminho que nos levaria à frente. Achei que tínhamos resolvido problemas seriíssimos, como o da educação. Deu nisso que está aí.
Qual o peso da herança colonial?
Os milhões de escravizados e a economia rural fizeram com que a população ficasse alheia à política até os anos 1950. De 1950 a 1980 houve o maior crescimento demográfico e a maior transferência de pessoas do campo pra cidade. Houve invasão de povo na política, e pessoas que nunca tinham votado, ou o faziam a mando dos fazendeiros, passaram a ter capacidade de agir. Os militares mantiveram o direito do voto, mas cortaram liberdade.
O que faz o país cometer sempre os mesmos erros?
A elite econômica, inclusive nas altas camadas do funcionalismo público e das estatais, bloqueia medidas redistributivas. Não considero, por exemplo, o governo Lula de esquerda. Não se conseguiu tocar nos pontos que afetam a desigualdade. Os 5% dos ricos do Brasil seguiram tendo 40% da renda brasileira. Mas o grande enigma brasileiro é que a entrada do povo na política não o beneficiou. Houve atos importantes no governo Lula, como a ação afirmativa. Adotaram-se as cotas e o impacto foi muito grande, mudou a cara das universidades públicas, mudou de cor. Isso, sim, foi, talvez, a iniciativa mais importante para integração social e racial.
O Brasil ainda é o país do futuro?
Não, não é. Não enxergo um futuro bom para o país, os dados não fecham. Creio, e aí já é talvez exagerado, que o Brasil não será um grande país no futuro e também não será capaz de construir um país de renda média, como a Espanha. Estou pessimista.
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