O risco de fragmentação, como aconteceu em toda a América Latina, era real. Viria a se expressar com muita força, por exemplo, na Confederação do Equador, em 1824, tendo à frente Pernambuco. A república seria formada também pelas províncias de Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e Alagoas, mas nenhuma delas aderiu ao movimento separatista. E, também, na Revolução Farroupilha (1835-1845), com a formação da República Rio-Grandense e da República Juliana. No primeiro caso, os líderes foram executados, entre os quais Frei Caneca, arcabuzado; no segundo, os que negociaram a paz foram anistiados e incorporados ao Exército, com suas patentes.
Com a dura repressão das revoltas, entre as quais a Balaiada (MA) e a Cabanagem (PA), manteve-se a integridade territorial do país e a centralização do poder do imperador Pedro II, para o qual foram fundamentais o Senado, com sua política de conciliação, e a magistratura togada, nomeada pelo Imperador. O Exército e a Marinha foram constituídos nesse processo. A construção da identidade do povo brasileiro, porém, foi muito mais lenta, para o qual teve papel decisivo a Revolução de 1930.
Nela, houve choque de concepções: de um lado, os setores da elite que adotaram as teses de Oliveira Vianna, para o qual as estruturas políticas republicanas eram artificiais e o Brasil meridional, liderado pela elite agrária e os militares, seria a matriz da formação do novo Estado brasileiro; de outro, setores castilhistas que tinham identidade com as massas trabalhadoras, liderados por Alberto Pasqualini. A elite paulista, com concepções liberais, tentou retomar o poder em 1932 e fracassou, mas cultivou com êxito a ideia de que São Paulo é a locomotiva do país. O Rio de Janeiro fazia o contraponto, era o “tambor do Brasil”.
Coube, mais uma vez, aos mineiros, com Juscelino Kubitschek, o projeto de integração e combate às desigualdades regionais, cujo âncora geopolítica foi a construção de Brasília, para onde foi transferido o Distrito Federal. Essa ideia-força viria a ser a bandeira legitimadora do regime militar, cujo lema era Segurança e Desenvolvimento, uma leitura autocrática do lema positiva da bandeira nacional: Ordem e Progresso.
Mas a ideia de que somos um só povo e uma só nação não foi monopolizada pelos militares, apesar do Pra frente, Brasil da Copa do México, em 1970. Na letra de Para Todos, Chico Buarque sintetiza as características do núcleo familiar que resulta do fluxo migratório, juntamente com a miscigenação, e sedimenta união dos brasileiros: “O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano”. O compositor foi um ferrenho oposicionista ao regime, tendo amargado o exílio por causa de suas canções.
Entretanto, não devemos acreditar que as nossas contradições regionais e preconceitos étnicos e sociais tenham deixado de existir. Em São Paulo, todo nordestino é baiano; no Rio, paraíba. Todo louro é galego ou gaúcho; no Araguaia, todo forasteiro era paulista. O governador de Minas, Romeu Zema, com seu sincericídio, exumou sentimentos negativos em relação ao Nordeste e despertou o ressentimento ideológico dos que venceram as eleições nos estados do Sul e do Sudeste, mas não reelegeram o ex-presidente Jair Bolsonaro, devido à grande votação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Nordeste. Não devemos subestimar as implicações que isso terá daqui para a frente.
Há uma articulação de governadores do Sul e do Sudeste contra os estados do Norte e Nordeste na reforma tributária, por causa da mudança da arrecadação dos tributos da origem para o destino das mercadorias. Essa articulação foi bem-sucedida na Câmara, mas está inferiorizada no Senado, no qual a federação está representada de forma igualitária: três senadores para cada estado. Celso Furtado, entre os intérpretes do Brasil, foi dos mais preocupados com o papel do federalismo. Advertia que essa bandeira estava condenada a reencarnar ciclicamente, em todos os momentos críticos, que colocassem em tela o contrato social e a reformulação do arranjo de poder. A reforma tributária é isso.
Sua grande preocupação era arquitetar um “federalismo regionalizado cooperativo” como instrumento para impedir a exclusão do Nordeste e evitar a implosão da nação pela radicalização de suas disparidades regionais. Com sinal trocado, o histórico unitarismo da esquerda brasileira, desde os antigos PCB e PTB, dificulta esse federalismo cooperativo.
Mas há uma questão ainda mais séria. Um dos ingredientes da globalização vem sendo o enfraquecimento da identidade nacional e a sua fragmentação. O sujeito e a identidade na modernidade tardia e pós-moderna foram fragmentados; nas redes sociais, isso é evidente. Historicamente, as identidades étnicas e regionais foram abrigadas sob o teto do Estado-nação, numa comunidade estável, com território próprio e idioma comum, mas isso está mudando no mundo. A nação é uma construção imaginária, que não pode ser subalternizada por sentimentos culturais e étnicos regionais. O que o governador Zema fez foi apartar os brasileiros do Sul e do Sudeste dessa comunidade imaginária. Seríamos dois Brasis, um moderno, produtivo e autossuficiente; outro atrasado e improdutivo, que precisa ser carregado nas costas. É aí que mora o perigo.
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