Cada trincheira tem os seus códigos de apresentação ou de linguagem e inúmeras linhas vermelhas (ou encarnadas, conforme a trincheira) consideradas intransponíveis. Uma vez ultrapassadas, é o caminho sem retorno. A pessoa é dada como perdida para as forças do mal do lado oposto.
Impôs-se cada vez mais a cultura do cancelamento – palavra do ano em 2019, para o dicionário Macquarie. É o pão nosso de cada dia nas redes sociais a prática de retirar o apoio (ou de cancelar) figuras públicas ou empresas após terem feito ou dito algo considerado questionável ou ofensivo para um determinado grupo. À primeira toada divergente, é a debandada geral em manada. Tanto maior quanto mais radicalizada for essa figura: pelo ferro se mata, pelo ferro se morre.
Antigamente, era preciso coragem para se ser radical. Hoje, neste caldo em que cresce a intolerância, tornou-se um exercício de imensa coragem ser-se moderado. Ousar saltar barricadas e falar com o “inimigo”. Cometer o arrojo de o ouvir e, imagine-se, tentar perceber o que o move. E optar por não se radicalizar nas tomadas de posição, tentando ver os vários lados da mesma questão, sendo certo que isso gera menos “buzz”, menos seguidores e menos likes. A moderação é um estado de alma e um modo de estar na vida cada vez mais em desuso, e isso diz muito sobre o tipo de sociedade em que nos transformámos.
Há vários tipos de sectaristas: 1. Alguns protofascistas emergentes, que veem um perigoso marxista em qualquer pessoa que defenda valores humanistas ou democráticos; 2. Certa extrema-esquerda, que se eleva no altar da sua superioridade moral e que vê facínoras capitalistas em todos os que não alinham pela sua bitola de valores e pelo dirigismo estatal da sociedade; 3. Vários ativistas radicalizados – sejam feministas, antirracistas, LGBTQIA+, ambientalistas ou negacionistas – que ostracizam quem não é igualmente ativo na defesa das suas causas. Os sectaristas podem, claro, misturar-se, adensando a atitude proselitista. E estão por todo o lado, como uma praga de gafanhotos a tomar conta da paisagem.
Os alvos da semana dos sectários de serviço foram Sérgio Sousa Pinto, da ala centro do PS, que ousou aceitar entrar numa mesa-redonda com várias figuras – Helena Matos, Francisco José Viegas e Pedro Boucherie Mendes –, organizada no âmbito da convenção do Movimento Europa e Liberdade, que visa alargar a discussão entre as direitas, e em que falará, de seguida, André Ventura. Levantou-se a esquerda em choque: como é possível “legitimar o branqueamento democrático” do Chega? Fogueira com Sérgio Sousa Pinto, que já tinha sido atacado no passado por ter assinado um manifesto contra a obrigatoriedade da disciplina de cidadania nas escolas. Qual é o crime agora? O terrível delito de aceitar debater democraticamente.
Vilipendiado foi também um grupo de jovens twitteiros – João Maria Jonet, Leonor Rosas, Maria Castello Branco e Adriana Cardoso – de orientações políticas diferentes (social-democrata, bloco de esquerda e liberais), que se fotografaram juntos a descer a avenida no desfile do 25 de Abril. O nojo, o arrojo!, gritou uma horda de gente que não concebe que pessoas de partidos diferentes possam ser amigos e tão-pouco caminhar pelo mesmo passeio.
Assim vai o mundo. Eu, com amigos de absolutamente todas as alas do espetro político, umas semanas atacada nas caixas de comentários por ser uma perigosa trotskista e noutras por ser uma bafienta reacionária, acho tudo isto muito triste. E, pior, muito perigoso para a democracia. E, agora, cancelem-me!
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