terça-feira, 27 de agosto de 2019

Onde há fumaça, há fogo, e ele arde e queima

Na semana em que o dia virou noite, uma feia fumaça cobriu os céus de Brasília, atingindo as principais instituições de fiscalização e controle da administração pública. Da Receita Federal ao Coaf, do Cade à Polícia Federal, o que se viu foram órgãos agonizando em queimadas patrocinadas pelo Planalto, algumas delas com rajadas de apoio do STF e do Congresso.

Nunca é demais lembrar que o governo Bolsonaro herdou uma estrutura de órgãos de fiscalização e controle que vieram se afirmando paulatinamente nas últimas décadas e cuja atuação no combate à corrupção produziu o cenário favorável à ascensão de um candidato com discurso antissistema. Aos oito meses do governo símbolo da negação da velha política, essa estrutura se vê ameaçada tal como animais numa floresta em chamas.

Sobre o Cade pesa a suspeita de que cadeiras vagas foram politicamente negociadas pelo governo com o Senado, de olho na votação da reforma da Previdência e na sabatina do filho-embaixador. Na Receita Federal, o número dois na hierarquia foi destituído do cargo a pedido de Bolsonaro, na esteira de ações do STF e do TCU que emparedaram auditores que estavam investigando altas autoridades. Criticado pela interferência, o presidente disse que fora eleito para “interferir mesmo” e que, “se é para ser um banana, um poste dentro da Presidência, estou fora, pô”. É curioso que tenha se utilizado de símbolos fálicos para afastar a hipótese de impotência, mas desta feita agiu para obstruir a atuação de fiscais que antes aplaudia.

No caso da Polícia Federal, um dos órgãos de maior prestígio nesta década de combate à corrupção, o presidente ameaçou a autonomia da instituição ao intervir diretamente na superintendência do Rio de Janeiro. Criticado pela atitude que seus antecessores não ousaram adotar, Bolsonaro afirmou que “se eu não posso trocar o superintendente, eu vou trocar o diretor-geral”, dobrando a aposta e passando por cima de Sergio Moro, ministro a quem a PF está teoricamente subordinada. Quanto ao Coaf, a novela que se arrastava desde o início do novo governo se encerrou com a transferência do órgão, que já esteve na Fazenda e na Justiça, para o Banco Central. A caminho do novo endereço, Roberto Leonel, seu dirigente e outro homem de confiança de Sergio Moro, caiu do caminhão da mudança. Beneficiado por uma sequência de decisões que atingiram o Coaf, o filho-investigado do presidente agradece, assim como Queiroz (onde quer que ele esteja).


Para entender essas queimadas, é necessário considerar que, ao longo das últimas décadas, o Brasil viu florescer um importante conjunto de instituições de fiscalização e controle, mas isso não se deu mediante um plano geral prévio e articulado. Antes, tem sido resultado de germinação espontânea, que começa no interior desses próprios órgãos, cujas burocracias buscam afirmação institucional e crescentes graus de autonomia e poder. Foi o que aconteceu com o Ministério Público e, em parte, com a Polícia Federal, que hoje servem de exemplos a outros órgãos que também pretendem alcançar a copa das árvores. Segundo o mantra, querem ser considerados como órgãos de Estado, e não de governo, isto é, permanentes e autônomos para sobreviver às intempéries provocadas pela alternância de partidos no poder.

Paradoxalmente, tem sido em situações críticas como a atual que tais órgãos ganham força. Delegados da PF voltaram a reivindicar a aprovação de emendas constitucionais capazes de assegurar maior independência à corporação. Quando propôs a transferência do Coaf para o BC, o ministro Paulo Guedes afirmou que “toda vez que tem uma crise institucional, não é só uma cabeça rolar. Uma cabeça rolar pode até acontecer, desde que haja avanço institucional”. O ministro descreve bem o fenômeno que tem marcado a evolução das instituições nesse campo e, provavelmente, acredita que a nova Unidade de Inteligência Financeira (UIF) representa um avanço, apesar de cabeças terem sido queimadas em seu nome.

Todavia, o tempo de Bolsonaro não se assemelha a qualquer outro, e essa lei geral do desenvolvimento institucional brasileiro, segundo a qual órgãos de controle crescem na crise, pode caducar. Até o Congresso Nacional teve o seu dia de fogo, ao aprovar a Lei de Abuso de Autoridade, algo esperado há muitos anos, mas que somente agora prosperou com as raízes expostas da Lava Jato. Quem percebeu que a queimada pode estar correndo morro abaixo foi o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Unafisco). Segundo Mauro Silva, sua categoria é contrária à proposta que tem sido ventilada de transformar a Receita Federal em autarquia — portanto mais independente —, pois veem na iniciativa uma espécie de “cavalo de Troia”, um presente bonito por fora, mas que seria preenchido por nomes estranhos à carreira e nomeados politicamente, por dentro. Um golpe contra a instituição, em resumo.

Desmatamento seguido de fogo, é isto que devem temer as instituições de fiscalização e controle no período atual.

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