terça-feira, 27 de agosto de 2019

Amazônia

Antes da pátria, eras úmida promessa...
semente primordial
árvore mãe
planta continental
arvoredo, floresta, selva palpitante.
Hoje canto tua estatura vertical
o mogno gigantesco, seu colossal diâmetro
canto essa caudalosa geografia
essa multidão de vidas que sustentas
canto o itinerário sazonal da seiva
e essa infinita linfa...
parto de infinitas criaturas.
Canto teu verde planetário
e no teu imenso respirar,
canto o nosso pão de oxigênio...
Canto a ti... Amazônia
bosque inquietante da esperança...
e eis porque denuncio esse machado cruel sobre teu peito...
essa fruta milenar, dia a dia devorada.

Antes da grande nação...já eras tu...
a nação primogênita
filha dos filhos da mata.
A infância da pátria foste tu,
sílaba aborígine, idioma tupi
cerâmica, canoa e tacape
ritual, dança e canção.
Foste tu a raiz, sangue ameríndio
o parto da nacionalidade.

Hoje canto os povos da floresta
e o desencanto dessa memória esquecida.
Falo de sobreviventes
de tribos desgarradas
de aldeias tristes
de sonhos desmatados
de segredos e tradições pirateadas
das águas lavadas na bateia do mercúrio.

Amazônia....Amazônia...
quem deterá o teu martírio
uma vida tão diversa num adverso viver...
Falo dos teus hectares de sangue
da lâmina cruel, da pira ardente
dessa cartilha de serras, rifles e archotes
dessa morte plural
na diversidade de aves e primatas
roedores, felinos e serpentes.
Falo de uma terra de cepos
de raízes degoladas
de caules retalhados
de castanheiras preservadas... a morrer de solidão.
Falo da linha negra do fogo
e desse cemitério de troncos defumados.

Falo da floresta sitiada
por uma legião de máquinas assassinas
falo de estradas e picadas clandestinas
de súbitas clareiras
desse assalto interminável... lento e invisível.
Falo de grileiros, posseiros, garimpeiros, bandoleiros
e de terras demarcadas sob a mira das pistolas.
Falo de dragas e crateras
das águas manchadas e dos rios estropiados.
Falo da vida degradada pelas pastagens da ambição.
Manoel de Andrade, "Cantares"

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