Não adianta. Ele não entende a democracia. Ponto final. Imaginem o que teria acontecido se, na Presidência da República, Lula tivesse dito em algum momento: "Democracia e liberdade só existem quando os trabalhadores querem". Como sua origem era o meio sindical, a leitura óbvia e necessária teria sido uma só: se o PT decidir, põe fim à democracia. Mas Lula não disse isso, certo? Nem por isso, é verdade, o PT deixou de aparelhar o Estado. E foi combatido — inclusive por este escriba.
Não há como dourar a pílula. Bolsonaro quis dizer o que disse e disse o que quis dizer, o que implica uma agressão múltipla à Constituição Federal. Fere o Parágrafo Único do Artigo 1º:
"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Observem que não está escrito lá que todo o poder emana das "Forças Armadas".
Há um outro artigo que as implica diretamente com a questão democrática. É o 142:
"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
Como se nota, elas são garantias dos poderes constitucionais, não forças de tutela. Para que intervenham, inclusive, na garantia da lei e da ordem internas, é preciso que contem com a concordância dos demais Poderes. Que são civis.
O general Hamilton Mourão, vice-presidente também eleito, tentou dourar a pílula, assegurando que a fala foi mal interpretada. E empregou a Venezuela como exemplo. Como, naquele país, as Forças Armadas ainda garantem o apoio a Nicolás Maduro, então vige uma ditadura.
O general é inteligente o bastante para saber que sua frase pode ser desconstruída sem muito esforço. Então ficamos assim, senhor vice-presidente: a democracia existe por vontade do povo; as ditaduras, por vontade dos militares. O que lhes parece? Há uma diferença que distingue a civilização da barbárie entre estas duas frases de sentidos semelhantes apenas na aparência:
1: Nas democracias, as Forças Armadas garantem os Poderes Constituídos;
2: só existem democracia e Poderes Constituídos se as Forças Armadas quiserem.
Na primeira, elas se subordinam à ordem democrática; na segunda, elas a tutelam. Os países que vivem a circunstância nº 1 são democracias; os que experimentam a nº 2 são ditaduras.
O contexto da fala de Bolsonaro também é elucidativo. Ele não fala como chefe de Estado, como chefe de uma milícia política. Ainda fazendo referência ao vídeo pornô que espalhou Brasil afora, afirmou:
"A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia."
E aí veio o complemento:
"E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer".
Como se nota, Bolsonaro se dá o direito de determinar o que sejam amor à pátria, respeito à família e amor à democracia. Quanto aos países "que têm ideologia semelhante à nossa", devemos ficar no aguardo: assim que este gênio da raça definir a nossa "ideologia oficial", vamos ver de quais ele pretende se aproximar e se distanciar. Penso aqui em alguns compradores dos nossos produtos e que compõem mais da metade do nosso superávit comercial: China, países árabes e Irã. O Brasil deve repudiá-los, no cenário internacional, em razão das diferenças?
Que coisa! A cada dia, uma insanidade nova.
Sim, Bolsonaro já violou o Item 7 do Artigo 9º da Lei 1.079 ao espalhar um vídeo pornô. Agora atenta contra os valores expressos nos incisos II, III e IV do Artigo 4º da mesma lei. Lá está escrito:
"São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: II – O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; III – O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: IV – A segurança interna do país."
No fim das contas, está dizendo às Forças Armadas: "Enquanto vocês segurarem a minha onda, faço o que "bem entender".
Asseguro ao presidente Jair Bolsonaro que não será assim.
Se preciso, o povo o derruba, segundo a Constituição. E as Forças Armadas vão garantir a Constituição, não um doido der plantão.
Se chegar a um ponto desejado por ninguém, os militares ficam com a democracia, e Bolsonaro cai.
Para encerrar: nos EUA tão admirados pelo presidente, se Donald Trump afirma algo semelhante, é deposto por um processo de impeachment. Inclusive com os votos dos republicanos, que não veem a hora de se livrar do seu próprio maluco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário