Em setembro, um estudo científico preliminar apontou que 66% dos moradores de Manaus, no coração da floresta amazônica, já teriam anticorpos para a covid-19, o que faria da cidade a primeira no mundo a alcançar imunidade coletiva. Isso seria produto da simples inação dos governantes para conter o avanço da pandemia. A pesquisa ainda precisa passar pela revisão dos pares, porém, uma nova onde de casos na região coloca em xeque essa tese.
A estratégia de permitir a livre infecção entre as pessoas, no entanto, não começou no Brasil. Ela ganhou força depois de uma proposta, intitulada Declaração de Great Barrington, assinada pelos epidemiologistas Martin Kulldorff (da universidade Harvard), Sunetra Gupta (Oxford) e Jay Bhattacharya (Stanford). Sua ideia é “permitir àqueles que estão sob um risco mínimo de morte que vivam suas vidas com normalidade para alcançar a imunidade ao vírus através da infecção natural, enquanto se protege melhor àqueles que se encontram sob maior risco”, segundo escreveram os três signatários. “Chamamos isso de Proteção Focada.”
A proposta gerou numerosas adesões, mas também a reação imediata da OMS e da comunidade científica, que terminou por responder através dos 80 signatários da carta na The Lancet e onde observam, de saída, que “a proporção de pessoas vulneráveis constitui até 30% da população em algumas regiões”.
“Qualquer estratégia de gestão da pandemia que dependa da imunidade das infecções naturais pelo coronavírus é errônea”, afirmam os cientistas. Segundo eles, a transmissão descontrolada nas pessoas mais jovens (supostamente com menor risco de morte) pode acabar aumentando a mortalidade em toda a população. “O custo humano seria enorme”, acrescenta Swaminathan.
A diretora científica da OMS aponta, além disso, que alcançar a imunidade coletiva de forma natural exigiria que pelo menos 70% da população desenvolvesse anticorpos, um processo que levaria muito tempo e que os autores da carta aberta alertam que teria efeitos catastróficos para a economia global. “Além disso, não há provas de uma imunidade protetora duradoura ao SARS-CoV-2 como resultado da infecção natural, e a transmissão endêmica suporia um risco para as populações vulneráveis”, acrescentam.
Além da alta mortalidade, a estratégia da imunidade de rebanho traria um desafio insustentável para os sistemas de saúde. “Se todo mundo adoece de uma vez, o sistema hospitalar tem que estar muito bem desenhado para poder absorver todos esses doentes”, escrevem Esperanza Gómez-Lucía e José Antonio Ruiz-Santa-Quiteria, pesquisadores do Departamento de Saúde Animal da Universidade Complutense de Madri.
A imunidade de rebanho natural, longe de pôr fim à pandemia, segundo os cientistas, “daria lugar a epidemias recorrentes, como ocorreu com numerosas doenças infecciosas antes do desenvolvimento de vacinas”. É o caso do ressurgimento do sarampo onde os movimentos antivacina proliferaram ou os programas de imunização não foram completados.
Os autores da carta também são contra o conceito de Proteção Focada, defendido pelos autores da Declaração de Great Barrington. Em primeiro lugar, porque definir quem é vulnerável é complexo no caso do coronavírus e, em segundo lugar, porque afirmam que “o isolamento prolongado de grandes faixas da população é praticamente impossível e pouco ético”.
“A evidência empírica de muitos países mostra que não é factível restringir os surtos descontrolados a setores particulares da sociedade. Este enfoque também corre o risco de exacerbar ainda mais as desigualdades socioeconômicas e as discriminações estruturais já expostas pela pandemia”, argumentam os cientistas.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, somou-se a estas advertências e afirmou que a imunidade coletiva significa “permitir infecções, sofrimentos e mortes desnecessárias”. “Nunca na história da saúde pública se utilizou a imunidade coletiva como estratégia para responder a um surto, e muito menos a uma pandemia. É científica e eticamente questionável”, afirmou.
Adhanom e os cientistas atribuem as adesões à questionada imunidade de grupo à “frustração que o avanço da pandemia suscita em muitas pessoas, comunidades e Governos”. Mas insiste em que a única maneira de obter a imunidade coletiva é através das vacinas. “Não há nenhum atalho nem nenhuma medida única. É preciso empregar todas as ferramentas das quais dispomos.”
O coronavírus já infectou mais de 35 milhões de pessoas em todo o mundo e causou a morte de mais de um milhão. Os cientistas apontam como únicas medidas eficazes as que suprimem e controlam a transmissão, respaldadas por programas financeiros e sociais.
As medidas concretas que eles defendem coincidem com aquelas globalmente aceitas: distanciamento físico, uso de revestimentos faciais, higiene respiratória e de mãos, evitar multidões e espaços mal ventilados, testes rápidos, rastreamento de contatos e o isolamento. Estas são essenciais para reduzir a mortalidade e evitar o colapso dos serviços sanitários.
“A evidência é muito clara: controlar a propagação comunitária da covid-19 é a melhor maneira de proteger nossas sociedades e economias até que cheguem vacinas e terapias seguras e eficazes nos próximos meses. Não podemos nos permitir distrações que solapem uma resposta eficaz; é essencial agirmos com urgência com base em evidências”, concluem os pesquisadores.
O grupo de 80 cientistas internacionais que assinam a carta na The Lancet é composto por pesquisadores em saúde pública, epidemiologia, medicina, pediatria, sociologia, virologia, doenças infecciosas, sistemas sanitários, psicologia, psiquiatria, política de saúde e modelagem matemática. A carta será oficialmente lançada durante o 16º Congresso Mundial sobre Saúde Pública.
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