Um presidente da República em busca da reeleição, que precisa do socorro de um coach preferencialmente amoral, sinaliza o quê? Seu estado de pavor das urnas. Todas as pesquisas de opinião que Jair Bolsonaro gostaria de excomungar teimam em apontá-lo como provável/possível derrotado no segundo turno. Daí o recurso emergencial. Foi com semblante bastante desgrenhado que ele participou de uma live em que havia uma segunda estrela. Era Pablo Marçal, o deputado federal do PROS que obteve quase 250 mil votos no primeiro turno. Apresentado pelo presidente como seu coach particular, Marçal elencou uma série de instruções dirigidas a influenciadores e devotos, a ser seguidas até a reta final. Alguns trechos do que não deveria ter ido ao ar acabaram vazando.
Primeiro, o recurso ao medo de quem tem o que esconder:
—As pessoas vão bater em todos que se levantarem para defender o presidente. Vai ser um por um. Vão revirar a vida de todo mundo... — alertou o coach.
Marçal também engatou numa inevitável menção ao perigo de um apocalipse:
—Vocês estão sendo convocados por mim... É convocação. Pra gente um dia não precisar pegar em arma, pra um dia a gente não ficar louco, pra querer o país de volta...
E para a eventualidade de algum agitador bolsonarista alimentar resquícios de pruridos, garantiu absolvição prévia:
—Este não é o momento para ficar olhando para moral... Não é melhor nesses próximos 15 dias todo mundo suspender a própria reputação para defender esta nação? Colocar sua reputação um pouquinho de lado?
Participaram dessa tertúlia pouco cristã a deputada federal Carla Zambelli, o meteoro mineiro Nikolas Ferreira, o filho Zero Um Flávio Bolsonaro e o ex-secretário de Governo Fabio Wajngarten, cujas reputação, decência e moral há tempos situam-se abaixo de qualquer suspeita.
O medo tem cheiro, cravou a gloriosa romancista Margaret Atwood em 1972. Mas há vários tipos de medo. Um deles — subserviente, acomodado, acovardado à força —foi descrito em histórica carta do dramaturgo tcheco Vaclav Havel ao então secretário-geral do Partido Comunista de seu país, sete anos depois de os tanques soviéticos entrarem em Praga e enterrarem a efêmera primavera democrática que ali se instalara. A carta endereçada ao “Prezado Dr. Husak” desmontava em pedacinhos o discurso oficial de que a nação estava unida e pacificada:
— Comecemos por uma pergunta básica e obrigatória — escreveu Havel — Por que a população age de maneira a formar um impressionante retrato de uma sociedade em total união, que apoia seu governo de forma irrestrita? Para qualquer observador isento, a resposta é evidente: as pessoas estão movidas pelo medo.
Na carta, Havel detalha uma dezena de motivos comezinhos para os tchecos terem se moldado ao regime imposto ao país. Ele esclarece não mais se tratar do medo físico de ser preso, torturado, executado ou deportado, como no início da ocupação. O que o alarmava era a população que vestia a máscara de cidadão confiante, satisfeito, escondendo de si mesma uma percepção coletiva de algum perigo permanente e onipresente. Um medo pouco consciente até de mudança, mesmo que fosse para melhor — todo mundo sempre tem algo a perder, e algo a temer. Esse medo difuso, apontou o dissidente ao “Dr. Husak”, explicava a aparência de uniformidade, disciplina e unanimidade do seu regime e Estado policial. Mas algum dia chegaria ao fim esse apoio, ora amedrontado, ora oportunista, ao governo de “homens sem princípios nem espinha dorsal, dispostos a qualquer ato para manter o poder e privilégios”, escreveu o dramaturgo, sem temor. A História demorou 14 anos para lhe dar razão: no dia 29 de dezembro de 1989, Vaclav Havel tornou-se o primeiro presidente da Tchecoslováquia.
Histórias de resistência democrática têm repique vigoroso no país entrevado de hoje. O desempenho do candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, nas pesquisas sugere que o Brasil democrático de 2022 não pretende esperar 14 anos para interromper a cavalgada autoritária — quatro anos lhe bastam. Por seu lado, o cardápio bolsonarista de incivilidade contém ativos poderosos, por perversos: o ódio como propulsor da ideologia, o escracho como forma de diálogo, a violência como meio de comunicação, a manipulação política da fé.
Por sorte, nada assusta mais o ódio e o medo de mudança do que a alegria da esperança. Alegria e democracia rimam. De qualquer ângulo que se olhe a disputa dos presidenciáveis — nas ruas, postagens, no humor, nos próprios candidatos —, a campanha por um Brasil mais democrático tem veio alegre, enquanto a do adversário tem o peso de uma cruzada messiânica. Certeza mesmo, apenas uma: nenhum dos dois Brasis será eliminado em 30 de outubro.
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