Era apenas um funcionário que cumprira ordens sem pensar seriamente no que fazia. Essa explicação de Arendt nunca me convenceu. Motivo simples: Eichmann não era um personagem menor. Era um nazista convicto e um operacional decisivo do Holocausto.
Mas se a análise de Arendt não serve para Eichmann, o que ela nos diz sobre a “banalidade do mal” mantém a sua validade.
Quando falamos do comportamento dos alemães durante o Terceiro Reich, há teses para todos os gostos.
Os alemães colaboraram com o regime (ou, pelo menos, não se opuseram) porque o antissemitismo era endêmico na sociedade.
Os alemães se submeteram a Hitler porque a reverência pela autoridade era um traço de caráter.
Os alemães toleraram a indignidade porque também temiam pelas suas vidas.
Admito que todas essas explicações sejam válidas. Mas a “banalidade do mal”, entendida como ausência de pensamento e de empatia, é a mais poderosa.
Que o diga Brunhilde Pomsel, que só agora conheci. O documentário intitula-se “Uma Vida Alemã” e consiste numa longa entrevista com essa mulher, que na altura das filmagens, em 2016, tinha 104 anos. Acabaria por morrer no ano seguinte.
Entendo o interesse pela personagem: não é todos os dias que encontramos uma das secretárias de Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista. E que nos tem a dizer Brunhilde com uma clareza impressionante?
De início, ela ensaia as explicações clássicas para a submissão: pais autoritários; educação prussiana; medo da ditadura. E ignorância, muita ignorância sobre assuntos políticos.
Mas, depois, nos momentos de confissão mais sincera, tudo que vemos é a mediocridade do pensamento e da imaginação.
Nas vésperas da derradeira vitória eleitoral dos nazistas, em março de 1933, Brunhilde inscreve-se no partido para conseguir um bom emprego.
Depois, já no Ministério da Propaganda, Brunhilde fala do salário (ótimo), dos colegas (simpáticos), das roupas (elegantes), dos móveis (modernos) e até do próprio Goebbels (sempre bem vestido, apesar de coxear).
Nem o fato de ter uma amiga judia, que lentamente foi desaparecendo da sua vida, é analisado com tempo e seriedade. Sabemos que foi assassinada em Auschwitz, no último ano da guerra, e não se fala mais do assunto.
Dizer que Brunhilde Pomsel representa o mal seria ridículo, até porque a própria, aos 104 anos, reconheceu a desumanidade do regime.
O documentário é importante por outro motivo: as tiranias só sobrevivem porque as pessoas banais aceitam o aberrante como normalidade. Essa falha de pensamento, essa sabotagem da imaginação moral, essa redução da ética à mera conveniência pessoal é o sonho úmido dos tiranos.
Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos.
2. Minha coluna da passada sexta-feira recebeu incontáveis emails. Metade dos leitores entendeu o ponto, que era essencialmente filosófico, concordando ou discordando.
A outra metade preferiu delirar, como se eu estivesse a defender ações do Exército sobre manifestantes, a beleza da Confederação americana ou a biografia de escravocratas. Como dizia o pai de George Costanza, “serenity now!”.
Repito, mais lentamente, para o pessoal que tem problemas cognitivos: falar em “tolerância liberal” não significa respeitar igualmente todas as opiniões ou obras que existem.
Significa entender que o espaço público deve ser o mais neutro possível para que as vozes do passado e do presente possam coexistir na sua grandeza ou miséria. Uma sociedade adulta aprende com tais grandezas e misérias, até para evitar repetir os mesmos erros.
Isso não significa que um jornal não possa escolher os colunistas que entende, que certas obras de arte não devam ser discutidas ou que certas estátuas não possam ser removidas para um museu ou para um depósito.
Significa, tão só, que a melhor forma de fazer isso não é pela perseguição de hereges, pela remoção censória de filmes e séries ou pela destruição pura e simples de estátuas ou monumentos. Esses são os métodos dos fascistas, não dos democratas.
João Pereira Coutinho
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