quarta-feira, 17 de junho de 2020

No rastro do dinheiro

Dificilmente será superada a crise entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF). Sobretudo porque não há nenhuma serventia em fazer acordo com os demais poderes da República, pois Bolsonaro acha que o Executivo tem que se sobrepor, e almeja que os outros se imbuam dessa secundariedade para que o deixem trabalhar sem limitações institucionais.

É seu entendimento autoritário do que seja democracia representativa. Vários acordos já foram feitos, pactos firmados, e Bolsonaro continua o mesmo, a ponto de o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, o mais empenhado nesse pacto de governabilidade, ter desabafado em sua mais recente manifestação, dizendo que não é mais possível aceitar “dubiedades” de Bolsonaro e Mourão.


Outra impossibilidade é o presidente renegar as atitudes insanas dos extremistas que o apoiam. Bolsonaro trata o pessoal do acampamento “300 do Brasil” como a sua base, e as operações da Polícia Federal contra eles, pedidas pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras e aprovadas pelo ministro Alexandre de Moraes, são consideradas uma ação direta contra o governo, desnecessária já que os extremistas não são em grande número.

Essa leniência com esses malucos, mesmo que ainda não tenham passado da pirotecnia para atentados reais, só transmite a ideia de que eles têm a complacência do governo, que os considera seus aliados. Os blogueiros das fake news são “a mídia que eu tenho”, confessa Bolsonaro, tornando crível o financiamento oficial dessa máquina de destruir reputações.

O lado do presidente e sua trupe já está determinado por gestos e, principalmente, pela falta de crítica aos ataques ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso. O autoritarismo que esses comportamentos revelam, porém, não passam despercebidos pelos ministros do Supremo, especialmente quando a crítica passa também a ser pessoal, e não apenas às decisões de seus ministros, em termos apropriados a uma relação civilizada. Não é o caso do ataque desclassificado ao decano da Corte, ministro Celso de Mello, por um abaixo assinado de militares da reserva e poucos e desconhecidos civis. Nem dos ataques e ameaças pessoais que esses grupos fazem abertamente pela internet, sem receio de pagar por seus crimes por se sentirem respaldados.

Foi esse estado de coisas que fez com que Celso de Mello, na reunião ontem da segunda Turma do STF, se pronunciasse: “É inconcebível que ainda sobreviva no íntimo do aparelho de Estado brasileiro o resíduo de forte autoritarismo, que insiste em proclamar que poderá desrespeitar, segundo sua própria vontade arbitrária, decisões judiciais”.

Chamando a Suprema Corte de “a sentinela das liberdades”, Celso de Mello disse que é preciso resistir com armas da lei “(...) porque sem juízes independentes, jamais haverá cidadãos livres neste país”.

O comentário foi em resposta à ministra Carmem Lucia, presidente da Segunda Turma, que abriu a sessão com uma defesa da democracia, afirmando: “Somos nós, juízes constitucionais, a quem incumbe o dever de, em última instância judicial, não deixar que o Estado Democrático de Direito se perca, porque todos perderão. Atentados contra instituição, contra juízes e contra cidadãos que pensam diferente volta-se contra todos, contra o país”.

O objetivo do inquérito do STF é conter a propagação de fake news, e os ataques e ameaças aos ministros. É claro para todos que Bolsonaro tem apoio das chamadas milícias digitais. Ele próprio já disse que eles “são a mídia que eu tenho”. Jamais abriu a boca para criticá-los – até para o ministro Weintraub, que disse e repetiu que os vagabundos do Supremo deveriam ir pra cadeia, está procurando uma saída honrosa.

As investigações do STF descobrirão quem financia esses movimentos e se, como tudo indica, já estavam organizados antes da eleição e ajudaram ilegalmente a campanha de Bolsonaro e Mourão. Se ficar provada a conexão dos mesmos grupos durante a campanha, é financiamento ilegal. É um caixa 2 duplamente ilegal, porque agora o dinheiro privado é proibido por fora e por dentro nas campanhas.

Não adianta dizer que não admite julgamentos políticos, como se uma decisão contrária fosse política, e a favor, “justa”. Não há outra alternativa dentro da legalidade a não ser aceitar decisões dos tribunais superiores. Como disse o ministro Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a um interlocutor de Bolsonaro que lhe perguntou se o presidente tinha motivos para se preocupar com o julgamento: “ Só se tiver feito alguma coisa errada”.

Merval Pereira

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