As minudências do “episódio/provocação Pazuello”, desencadeado por Bolsonaro, conseguiram eclipsar por um dia outras constantes nacionais como o descontrole da Covid-19, cuja curva de mortandade aponta para a inimaginável marca de 500 mil vidas descartadas, além de 13 estados com UTIs novamente lotadas e uma CPI que desenterra os porões da (ir)responsabilidade do governo. O desmatamento da Amazônia também acaba de atingir o pior índice para maio desde 2016, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), enquanto a brutalidade policial contra o cidadão comum está cada dia mais escancarada. É um desmatamento institucional de vidas — a humana, a animal, a ambiental, a política —pela força.
Não bastasse, ainda temos a Copa América, rebatizada de Copa das Cepas pelo escritor Ruy Castro. Se é que Copa haverá. A absurda realização do evento deslocado às pressas para solo brasileiro, com a participação de dez seleções e um número indefinido de possíveis variantes do vírus, corre o risco de ter apenas um torcedor desvairado —Jair Bolsonaro. Além,é claro, da quadrilha de sempre — a CBF. O presidente apostou forte no poder anestesiante de uma bola rolando em estádios, com um possível triunfo da seleção canarinho.
Errou feio.
Cinquenta e um anos atrás, outro capitão, o jogador Carlos Alberto, tornara o Brasil o primeiro tricampeão do mundo ao marcar o último gol do histórico 4 a 1 contra a Itália, no México. Naquele junho de 1970, vivia-se aqui a fase mais repressiva da ditadura militar, mas a pátria dos “90 milhões em ação” comemorou como se não houvesse o amanhã da tortura, dos mortos e desaparecidos, do aniquilamento da vida nacional. Naqueles anos sombrios, venceu o “Ame-o ou deixe-o”.
Desta vez, será diferente: essa Copa bolsonarista tem tudo para dar errado. O enjeitado torneio, expelido da Colômbia e da Argentina por motivos diferentes, fará pouso arriscado num país que se arrasta em 79º lugar entre 180 países no ranking mundial de vacinados com duas doses. Somada à notícia de que vários convocados da seleção canarinho, atuantes em times europeus, poderão até desistir de jogar —seja por pressão, precaução ou convicção —, deve ter acendido alerta brabo nos organizadores. Mesmo que o evento seja disputado nos quatro estados acordados, a possibilidade de um desempenho pífio do Brasil agravará o efeito político bumerangue da coisa.
A propensão de Bolsonaro por gerar crises e planejar estultices é deliberada, fruto de sua insegurança conspiratória na Presidência. Impregnado de estratagemas usados à exaustão por Donald Trump, o primeiro presidente dos Estados Unidos a utilizar a expressão “meus generais” e a tentar um autogolpe para manter-se no poder apesar de derrotado nas eleições, o capitão no Planalto já quase oficializou sua estratégia para 2022, caso saia surrado nas urnas: simplesmente invalidar o resultado, convencer seus apoiadores de que houve fraude e convocá-los a mantê-lo no poder somando o uso da força ao caos nacional.
Convém não esquecer que, embora o assalto ao Congresso promovido por Trump não tenha conseguido impedir a posse de Joe Biden em 2021, a ala majoritária do Partido Republicano sustenta até hoje que o processo eleitoral foi fraudado e promete troco nas próximas eleições legislativas (2022) e presidenciais (2024). As conspirações para abalar a democracia nos Estados Unidos são bem financiadas, persistentes e alarmantes. Felizmente, nem todas chegam ao desvario do general da reserva Michael Flynn. Semanas atrás, o ex-assessor de Segurança Nacional de Trump sugeriu publicamente que as Forças Armadas dos EUA dessem um golpe de Estado semelhante ao dos militares de Mianmar, que causou perto de 800 mortes quatro meses atrás.
Tempos brabos, em resumo. Portanto, tempos de o Brasil encarar o pesadelo nacional de olhos bem abertos.
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