sábado, 17 de setembro de 2016

O país se transforma depois de sentir na carne a desgraça do petismo

Descalça na deslumbrante Mesquita Azul, na Turquia, como cristã que sou, eu reconhecia que aquele santuário não pertence só aos muçulmanos; como realização humana, pertence à civilização. Além de mercados públicos ou feiras, quando viajo sempre visito lugares santos (de templos, sinagogas e mesquitas pela Ásia e África a lindas catedrais como a da Sé e igrejinhas de missionários evangélicos no interior do nordeste). Diante do sagrado, choro sempre. Silencioso, copioso e sereno, meu pranto é gratidão e alegria reverente por simplesmente estar viva; também comoção por aqueles cujo repertório pessoal (de valores, desesperança, experiências, etc.) os impede entender a vida, na insuficiência constitutiva dela, como a oportunidade fugaz de, veja só, viver. Agastada pelas dificuldades cotidianas, me esqueço às vezes de olhar a vida assim, um esquecimento que impossibilita tudo.


Dilma jamais supôs que seria cassada, Cunha nunca acreditou que seria cassado, Lula sequer cogitou que seria pego. Mas sua excelência, o povo, se meteu na história e o fato é que a mulherzinha foi cassada, Cunha foi cassado e Lula, que já não se sentia muito bem, piorou antes que a súcia terminasse de comemorar o fim de Cunha não porque o ex-deputado é um escroque, mas porque é um escroque dissidente. No duelo entre a mulherzinha e o ex-deputado, o Brasil ganhou porque os dois delinquentes romperam a parceria pela qual saquearam o país e voltaram-se um contra o outro. Aos que perderam para o país devastado se arejar, não tenho nada a agradecer; batem o portão fazendo alarde típico dos que se vão tarde sem saber ascender nem decair com dignidade, além dessa ladainha cínica de vítimas perseguidas que se defendem com alguns dos advogados mais caros do país alargando todas as brechas legais inacessíveis à maior parte da população.

Diante do sagrado, o que somos além de nada? Não sei, mas um autor que adoro, o historiador romeno das religiões Mircea Eliade, diz no livro “O sagrado e o profano” que só somos se sairmos do tempo, assim como o sagrado que existe além e aquém do tempo (e por isso é); no tempo – profano por definição –, vamos desaparecendo no terror de existir para desaparecer. Talvez seja na memória ecoando existências que consigamos escapar ao tempo alcançando, mesmo como poeira transitória, certo modo de permanecer. Me achando esvaziada desse nada, tirei da bolsa meu diário de viagem para os apontamentos dispersos neste texto. Queria falar da luz e da cor do dia, das linhas arquitetônicas da Mesquita, das pessoas ali, das feições delas, reações, roupas e idiomas. Na estupidez de eliminar minhas referências, já que me pretendia preenchida do Outro/do sagrado, como se fosse possível compreender isso sem que algo em mim o compreendesse… cara, que viagem!

Mas meta-se a escrever em primeira pessoa e você vai ver só aonde isso te leva: lá dentro da história, porque a sintaxe puxa você, ela se atraca aos teus silêncios, vai abrindo coisas dentro da tua alma e você só vai se tocar de que disse realidades adormecidas quando a paz de pequenas e cotidianas hecatombes adiadas ou consumadas atravessar a tua percepção como a luz num vitral. Anos depois, relendo os apontamentos inconscientemente feitos em primeira pessoa, vi como, achando estar conectada ao sagrado fora de mim, meus registros estavam contaminados das minhas verdades e ficções, estas dando consistência àquelas. Que porcaria: quanto mais você procura fora, mais o fora te devolve a você mesmo. Que maravilha: não vale a pena viajarmos se voltarmos os mesmos; é como se não tivéssemos saído do lugar porque, de fato, não teremos saído do lugar. “Lugar”, por favor, entendido não como ponto geográfico, mas como aquele que delimita um jeito de estar no mundo. “Sair do lugar” é sair de si, dar passagem ao outro, universalizar-se e, então, voltarmos com o que tocamos e nos tocou. Ou seja, transformados. Possibilidade também sem deslocamentos geográficos: sair pelo mundo, sair para dentro de nós mesmos – viagens e viagens – talvez seja esta transformação o que combate o não sentido da vida.

O país se transforma depois de sentir na carne a desgraça do petismo fundado por um metalúrgico que há mais de 30 anos vi subir na carroceria de um caminhão para discursar em favor do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas, erigindo a nefasta figura soteriológica. Dispensável e indesejável ser um salvador, bastaria não ter sido um farsante que, tendo todas as condições como ele teve, modernizasse a nação. Enquanto à acelerada decrepitude física de Lula parece corresponder o acirramento da alma ególatra cujo dono continua se vendo acima da lei, Marcos Valério se transformou: é visível o quebrantamento na viagem interior imposta pela cadeia, o homem apresentou até certa disfunção na fala num depoimento, nesta semana. Isso conquista meu respeito pela dignidade que há na submissão ao que é superior a nós, atitude que sempre nos eleva. Claro que coletivamente o país vive um drama resultante das delinquências de um bando, mas sempre há o indivíduo e a circunstância dele, o olhar dele, a tragédia e a comédia dele – e isso me atrai de forma especial.

Transformação não alcançada pelo ex-deputado cujos planos de chegar à presidência da República se reduziram à expectativa da prisão; ausente na mulherzinha cujas gestão e cassação demoliram os sonhos de hegemonia do PT; inexistente no jeca que substituirá o trono de imperador perpétuo do Brasil pela eventual cadeia por tudo o que fez. Na resposta à coletiva do Ministério Público, cedendo às deformidades da alminha ególatra, Lula atacou FHC só para lembrar que o amor está sujeito a momentos de descuido que lhe podem ser fatais, mas o ódio é incansavelmente zeloso; é fiel na alegria, na tristeza e na proximidade do camburão. A denúncia desta quarta-feira pelo MP Federal e a aclamação do jeca como o chefe da propinocracia o encontram na sepultura política da qual não se erguerá. É nela, mais do que na cadeia, que Lula, transformado no miserável que sempre foi, pagará por seu crime mais grave: tudo o que deixou de fazer pelo país.

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