foi um best-seller instantâneo e inesperado. Rendeu honras a Euclides até sua morte trágica, aos 43 anos, vítima de um assassinato passional. Quem lê o livro, no entanto, fica intrigado.
Uma resposta foi ensaiada pelo crítico literário Roberto Ventura, um dos maiores especialistas na obra euclidiana, no opúsculo "A terra, o homem, a luta", que acaba de ser relançado. O título de Ventura reproduz a divisão que Euclides tomou emprestada do historiador francês Hippolyte Taine para organizar, de acordo com os cânones do naturalismo, as três partes de sua narrativa.
"Os sertões" funcionou, segundo Ventura, como uma espécie de mea-culpa de Euclides pela cobertura ingênua da Guerra de Canudos para o jornal O Estado de S. Paulo, repleta de propaganda republicana, sem nem mencionar o massacre dos rebeldes liderados por Antônio Conselheiro. Logo na nota preliminar, Euclides encerra a questão sobre a campanha: “Foi, na significação integral da palavra, um crime”. “Em 'Os sertões', acusou o Exército, a Igreja e o governo pela destruição da comunidade e fez a autocrítica do patriotismo exaltado de suas reportagens”, escreveu Ventura (também morto trágica e prematuramente, aos 45 anos, num acidente rodoviário em 2002, quando preparava uma biografia de Euclides, cujos trechos estão reunidos no volume póstumo "Euclides da Cunha: esboço biográfico").
A atualidade de Euclides não se restringe à qualidade da narrativa jornalística, essencial para preservar a memória dos fatos. Mais que isso, está na persistência, quando não da realidade, certamente das mentalidades que conduziram ao embate no sertão baiano, presentes até hoje na sociedade brasileira.
De um lado, o fanatismo religioso, o sebastianismo, a visão messiânica de um líder com forte apelo popular, a quem se atribuem poderes sobrenaturais, derrotado e visto como injustiçado. Do outro, a força de uma milícia cruel e sanguinária, que se julga garantida pela razão e pela lei, munida, nas palavras de Euclides, do “argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala”. Não é absurdo enxergar nas figuras que hoje polarizam o debate político brasileiro — o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro — decalques das ideias daquela época. Mais de 120 anos depois, o valor da obra de Euclides não está nas explicações geográficas, climáticas, raciais ou científicas, todas elas ultrapassadas. Está na explicação para a tragédia do Brasil.
Helio Gurovitz
A atualidade de Euclides não se restringe à qualidade da narrativa jornalística, essencial para preservar a memória dos fatos. Mais que isso, está na persistência, quando não da realidade, certamente das mentalidades que conduziram ao embate no sertão baiano, presentes até hoje na sociedade brasileira.
De um lado, o fanatismo religioso, o sebastianismo, a visão messiânica de um líder com forte apelo popular, a quem se atribuem poderes sobrenaturais, derrotado e visto como injustiçado. Do outro, a força de uma milícia cruel e sanguinária, que se julga garantida pela razão e pela lei, munida, nas palavras de Euclides, do “argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala”. Não é absurdo enxergar nas figuras que hoje polarizam o debate político brasileiro — o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro — decalques das ideias daquela época. Mais de 120 anos depois, o valor da obra de Euclides não está nas explicações geográficas, climáticas, raciais ou científicas, todas elas ultrapassadas. Está na explicação para a tragédia do Brasil.
Helio Gurovitz
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