Hoje, não há mais quem não veja. A Turquia está sob um regime de força. Principalmente depois da tentativa de golpe do ano passado, o governo fechou emissoras de rádio, encarcerou repórteres e editores, tirou do ar sites noticiosos e calou setores inteiros da imprensa. A máscara caiu mais recentemente, mas, desde antes, quem tivesse olhos para o tratamento que os jornalistas recebiam por lá saberia o que estava por vir.
Se você quer saber se a democracia vai bem, vá pelo critério da liberdade de imprensa. Olhemos para o México, por exemplo. Lá existe claramente uma sociedade democrática. No México, quem ameaça, fere e mata profissionais de imprensa não é o poder, mas bandos armados ligados ao narcotráfico. Ainda assim, alguns aspectos da vida institucional daquele país inspiram preocupação. Em casos documentados e conhecidos internacionalmente, a morosidade das investigações policiais e dos processos judiciais obstruiu o esclarecimento e a punição de crimes cometidos contra jornalistas. Aí, é o caso de perguntar: será que a democracia vai bem numa sociedade em que não há expectativa de justiça? Existe democracia plena se o Estado não é capaz de proteger as pessoas que trabalham na imprensa? A questão não é simples.
Ao poder democrático não basta que não ataque jornalistas – é preciso que ele disponha de meios eficazes e de determinação política para assegurar a integridade e a segurança física, psíquica e moral dos jornalistas que o fiscalizam e o criticam. O poder democrático é aquele que respeita, com atos e com palavras, a dignidade das redações.
É por essa lente que devemos olhar agora para Donald Trump. Ao contrário de Erdogan, que por vezes disfarçou sua ferocidade, o novo presidente americano vangloria-se da própria. Tem uma briga declarada não com um ou outro setor da “mídia” (palavra que ele usa para designar a imprensa), mas com a imprensa por inteiro. Logo após tomar posse, durante uma visita oficial ao escritório da CIA, disparou suas ogivas verbais: “Estou 1.000% com vocês (ele se dirigia aos funcionários da CIA). E a razão de vocês serem a minha primeira opção é que, como vocês sabem, eu tenho uma guerra em curso contra a mídia. Eles estão entre as pessoas mais desonestas da Terra”.
Quando um presidente da República se declara em “guerra” contra a imprensa, a sociedade vê-se diante não de um discurso, mas de um ato material. Uma declaração nesses termos, vinda do chefe de Estado da maior potência militar do planeta, é uma agressão consumada. Para que não restassem dúvidas quanto a isso, poucos dias depois, na quinta-feira passada, o principal estrategista da Casa Branca, Stephen Bannon, afirmou que a mídia é um “partido de oposição” e reforçou a artilharia: “A imprensa deveria sentir-se envergonhada e humilhada. E manter sua boca fechada e apenas ouvir durante um tempo. A mídia elitista errou, errou 100%” (ele se referia às pesquisas publicadas nos jornais, e aos comentários da grande maioria dos articulistas, que davam como certa a vitória de Hillary Clinton).
Enunciado mais claro, impossível. Mesmo reconhecendo que boa parte dos veículos jornalísticos dos Estados Unidos errou em seus prognósticos, mesmo reconhecendo que houve partidarismo favorecendo a candidatura do Partido Democrata, mesmo reconhecendo que a imprensa deve aprender a ouvir mais do que tem o hábito de ouvir, nenhum integrante da cúpula do Poder Executivo em nenhum país democrático tem o direito de mandar a imprensa ficar de “boca fechada”. Ora, se a imprensa fecha a boca, a democracia emudece. Bannon não se abala. Exige com palavras (por enquanto) o que Putin e Erdogan impuseram com violência.
Costuma-se dizer que os Estados Unidos são a maior democracia da Terra. Pois essa democracia não é inabalável. Ela está em perigo. Veremos agora se as instituições democráticas darão conta de conter os excessos selvagens de Donald Trump e seus aduladores, excessos contra imigrantes, contra os vizinhos do México e contra a liberdade de imprensa. Veremos se a democracia resistirá.
A julgar pelo nível de infâmia de sua retórica, Trump é candidato a ser pior do que Putin e Erdogan somados. A ambição de poder que ele acalenta não cabe nos sonhos dos pais fundadores do federalismo americano e nos ideais de uma comunidade internacional regida pelos direitos humanos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário