Em memória aos bombeiros militares que tombaram em combate durante as atividades de salvamento em Guarujá, São Paulo, em 3 de março de 2020
Há alguns eventos no Brasil que, pela sua importância e periodicidade, fazem parte do calendário nacional: Carnaval, Copa do Mundo, eleições e tantos outros. Infelizmente, a tragédia das chuvas também já faz parte do anuário. As televisões mostram imagens de casas desmoronando e de encostas colapsando que são tão parecidas com as exibidas em anos anteriores que fica difícil distinguir o que é transmissão ao vivo e o que são imagens de arquivo. Tudo se repete: os locais, as causas, a tristeza, a falta de planejamento urbano, as mortes.
Ninguém quer contar ou ninguém quer perceber que todas essas mortes são assassinatos. Cujos assassinos somos todos nós, que aprendemos a achar normal a ocupação desordenada que impera na cidade, onde milhares de pessoas moram em áreas de risco convivendo com a nossa condescendência desumana. Ninguém quer falar que tudo isso era evitável, que existe política pública para isso, que essas mortes não precisavam ter acontecido. Por um motivo muito simples: é mais fácil assim. É mais fácil responsabilizar o recorde dos índices de chuvas do que assumir que nossas mãos estão cheias de sangue, lama e água de enchentes.
Simultaneamente à nossa crise de responsabilidade, instaura-se um tenebroso espetáculo político cuja receita já é conhecida: primeiro, atribui-se a culpa daquela tragédia a gestões passadas, que não fizeram as obras que deveriam ter sido feitas; segundo, anuncia-se que serão feitos estudos e planejamentos para realizações de obras que impeçam as tragédias de se repetirem; e terceiro, as obras anunciadas não são realizadas ou não são finalizadas naquela gestão e a nova gestão repetirá fielmente o ciclo acima descrito. O jogo do empurra-empurra da culpa parece funcionar e, no final das contas, a justificativa é sempre a mesma: a culpa é da chuva, e todas essas vidas perdidas acabam ficando apenas na conta de São Pedro. O culpado é sempre o outro. E mais uma vez, adota-se a solução mais simples: no jogo eleitoral, vale mais a pena prometer construir uma creche do que enfrentar o intricado problema do (des)ordenamento urbano, que é denso, demorado e difícil de resolver. Nos debates eleitorais que teremos logo mais neste ano, a pauta da chuva será propositalmente esquecida, pois se aventurar a equacionar itens como reassentamento de comunidades, planejamento hidrológico e obras estruturais de prevenção é perigoso demais para nossos políticos. Demandaria reconhecer a perversidade da desigualdade social e a adoção de medidas impopulares e caras, que embora sejam urgentes e necessárias, implicariam na perda de votos. E nesse dilema é desnecessário dizer qual é a opção da esmagadora maioria dos governantes.
Nesta quarta, companheiros de São Paulo velaram o nosso irmão de farda Rogério de Moraes Santos, bombeiro militar que morreu enquanto tentava realizar o resgate de um bebê nos braços da mãe em meio ao cenário desolador que se instaurou no Morro do Macaco Molhado, em Guarujá. O bebê e a mãe foram encontrados sem vida. O outro militar que estava na equipe de resgate, Marciel de Souza Batalha, segue desaparecido.
O bombeiro que faleceu na atitude heroica deixou três filhos. O caçula tem 16 anos. É bem provável que ele pergunte por que o pai morreu, ao que será explicado que ele se foi tentando salvar a vida de duas pessoas que ele nem sequer conhecia. Talvez alguém possa dizer ao garoto que foi uma “fatalidade” de serviço. Não foi. A nossa conivência, o nosso descalabro político, a nossa banalização do absurdo fez mais uma vítima. Fomos nós, enquanto sociedade irresponsável e autocentrada, que matamos Rogério e todas as outras vítimas das chuvas. E ao acharmos que a morte desses dois militares e de qualquer outro óbito decorrente das chuvas foram “fatalidades”, matamos essas vítimas novamente, pois desconstituímos o legado que elas deixaram com as próprias vidas, da necessidade de mudanças urgentes em nossas concepções de vida na cidade e em sociedade.
No mês passado, a notícia de uma Lamborghini que valia alguns milhões e foi destruída pela chuva chamou mais atenção do que pessoas que tinham perdido suas casas e seus pertences por essa mesma chuva. Enquanto caminharmos assim, teremos falhado miseravelmente enquanto seres humanos e continuaremos a ter de entregar a vida de nossos melhores bombeiros para lembrar a sociedade de que esse não é o caminho. E o pior de tudo, a partir de hoje teremos de conviver com o choro e a eterna saudade dos três filhos de Rogério, levado pelas águas e destroços da nossa ganância, da nossa insensatez, da nossa insensibilidade. Não foi fatalidade.
Pedro Aihara. bombeiro militar, mestre em Direitos Humanos, especialista em Gestão e Prevenção de desastres, professor e palestrante. Atuou em tragédias como as de Brumadinho, Mariana, Janaúba
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