sexta-feira, 6 de março de 2020

O quase fim do mundo

Se dúvidas houvesse acerca de como a literatura nos prepara para a vida, os últimos dias teriam sido elucidativos. Senti-me personagem incrédula num cenário distópico dos livros. Ainda a mancha cinzenta se alastrava pelo mapa-mundo teimando em não chegar a terras lusas, e já me mandavam fotografias de prateleiras de supermercados vazias e sms desesperados. Álcool de todo o tipo, esgotado. Desinfetante para as mãos, nem vê-lo. Sabonetes antibacterianos, para esquecer. Máscaras protetoras, das mais simples às mais elaboradas, desapareceram aos milhões das farmácias e até das lojas de bricolage – havia quem comprasse dezenas de caixas de cada vez. Pobre do pintor ou do decapador que precise delas para trabalhar, vai ter de se aguentar sem elas. O culpado? O Covid-19, mais conhecido por coronavírus. Ainda ele não andava por cá, e já fazia nascer dúzias de cabelos brancos nas cabeças das mães que debitavam angústias em fóruns de conselho e desabafo, pedindo, desesperadas, as localizações das lojas onde ainda conseguiam comprar esse bem de primeira necessidade. Frascos de álcool e desinfetante passam clandestinos por baixo do balcão a 5 euros. Tempos desesperados exigem medidas desesperadas. Isto é um caso de vida ou morte!


Há uns séculos, teríamos todos de nos benzer quando pronunciássemos a palavra maldita: peste. Agora, ao invés de nos benzermos, ligamos o modo pânico civilizado e partimos para a ação preventiva tresloucada. Vai dar mais ou menos ao mesmo, ou seja, a lado nenhum. É nos flagelos e calamidades que conhecemos a essência humana, e ela, por mais civilização que lhe ponhamos em cima, será sempre uma: egoísta.

Fui à prateleira buscar Camus, pois claro, que n’A Peste retratou, em 1947, uma epidemia que assolou uma cidade, tal como a ocupação nazi assolara França. Ora abramos aspas longas para o Nobel da Literatura: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. (…) Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria idiota.’ E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar.

A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Os nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo o mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Os nossos concidadãos não eram mais culpados do que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.”

Ah, são tão reveladoras as epidemias. Os anos passam, mas Camus continua certeiro…

Hoje temos um mundo globalizado, cadeias de produção e abastecimento espalhadas pelo globo, viagens low-cost que encurtam todas as distâncias, internet que faz de nós semideuses, mas estamos à mercê de um micro-organismo invisível que nos põe na ordem em três tempos e bloqueia tudo perante a ameaça de flagelo. Vivemos numa ilusão de mundo livre e, em menos de nada, estamos num Quase Fim do Mundo, como lhe chamou Pepetela. Saramago resumiu-o bem no Ensaio sobre a Cegueira: “Só num mundo de cegos as coisas serão como verdadeiramente o são.”
Mafalda Anjos

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