terça-feira, 28 de março de 2023

Corrupção e colheres de prata

Quando se fala de corrupção debruçamo-nos sobre a sua definição, mas geralmente não discutimos a sua natureza, de onde vem e por que motivo parece ser tão antiga quanto a própria humanidade. De facto, a corrupção funda-se numa característica humana essencial, que sob determinada perspetiva é também uma das mais importantes virtudes: a reciprocidade. É precisamente por isso que a corrupção é dificílima de debelar, uma vez que é um fenómeno profundamente ligado ao comportamento humano mais básico, e que na verdade é axial para a nossa espécie: somos seres gregários que precisam de cooperar para sobreviver e singrar: “Uma oferta ‘desinteressada’ é paga com um favor” (Carlo Alberto Brioschi, em Corruption – A short history).

A corrupção é assim um dos lados negros da reciprocidade. Existem vários, como certas leis que também elas implicam uma relação de simetria, como a vingança ou o “o olho por olho, dente por dente”. Escrevi o seguinte em Jalan Jalan: «A reciprocidade é um comportamento social muito antigo e fundamental à sobrevivência. Quando caçávamos e não tínhamos maneira de conservar o que sobrava de um animal, partilhávamos. Essa dádiva era o nosso frigorífico, celeiro, ou uma espécie de banco. Ao partilhar, esperávamos que fizessem o mesmo connosco e a comida oferecida, mais tarde ou mais cedo, seria de algum modo devolvida. Num período de escassez seria expectável que o outro nos salvasse da fome. A partilha substituía a acumulação e a propriedade. Não era preciso fechar a comida à chave, pelo contrário, era essencial oferecê-la.

Esta forma de reciprocidade foi gravada na pedra e, em alguns casos, tornou-se lei, como no Islão, por exemplo. Mas o lado mais perverso da reciprocidade é que não funciona somente com o altruísmo, mas também com a vingança, o «olho por olho, dente por dente». Se é verdade que tendemos a retribuir os favores, também temos uma pulsão idêntica no que respeita às sevícias que nos infligem. “A uma vingança segue-se outra, e facilmente se chega a uma guerra», escreveu Dobelli, em A arte de pensar com clareza, acrescentando que «o que Jesus pregou, ou seja, interromper o círculo vicioso oferecendo ao agressor a outra face, é muito difícil porque há mais de cem mil milhões de anos que a reciprocidade pertence ao nosso sólido programa de sobrevivência. O mais antigo código penal, o de Hammurabi, já incluía o “olho por olho, dente por dente”».

Quando se diz que a corrupção sempre existiu – desde que existe humanidade – a sentença deve ser tomada literalmente. Estamos a falar de uma relíquia biológica.

A corrupção não só atravessou os tempos, como também costuma ser, no que respeita à sua natureza, suavizada, normalizada ou até elogiada. Albert Cossery escreveu o seguinte em As Cores da Infâmia: “O banditismo nas altas esferas da sociedade é uma peripécia admitida em todas as nações do mundo. O povo já está habituado e até aplaude esse género de proezas.”

Não é raro ouvir comentários em que se crítica a ingenuidade e sinceridade de alguns políticos – como incapazes ou inábeis – e se encomia a prática manhosa de outros.

É ainda interessante lembrar que a corrupção é frequentemente associada a salários baixos, contudo não parece ser uma ideia sustentada cientificamente1. Nada contra salários altos, evidentemente, mas é uma distorção aumentá-los a determinadas pessoas em determinados lugares para evitar comportamentos criminosos. Chesterton tinha uma noção clara sobre esta questão: “A nossa pretensão nacional à incorruptibilidade na política assenta precisamente no contrário: na teoria de que, colocando homens abastados em posições seguras, eles não se sentirão tentados a meter-se em fraudes financeiras. Não me interessa agora saber se a história da aristocracia inglesa — desde a espoliação dos mosteiros até à anexação das minas — permite sustentar esta teoria: que a riqueza serve de proteção contra a corrupção política. O estadista inglês é subornado para não ser subornado. Nasce com uma colher de prata na boca para evitar que de futuro lhe venham a descobrir as colheres de prata no bolso”.

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