terça-feira, 17 de outubro de 2017

Indecências

Discursos raivosos contra a nudez em exposições de arte ecoam no Parlamento. Eles anunciam o “fim dos tempos”, as maquinações diabólicas, o Brasil trilhando o caminho de Sodoma e Gomorra. Roguei ao mestre Houaiss, no seu Dicionário da Língua Portuguesa, e ele me revelou vários sinônimos para a “satânica indecência” condenada pelos furiosos inquisidores, arautos “da moral e dos bons costumes”: indignidade, obscenidade, descaramento, escândalo, indecorosidade, cupidez, dissipação, luxúria, torpeza, despudor, sem-vergonhice.

Não consegui ficar no universo da arte – que existe para fazer pensar. E comove, inquieta ou desagrada, a critério de quem voluntariamente a contempla. Lembrei, isso sim, de indecências a que somos obrigados a assistir diariamente, sem direito de escolha – como a de entrar ou não em um museu. Basta dar uma olhada nas ruas ou no noticiário recente para ver que a indignidade campeia!


É uma obscenidade termos os 10% mais ricos abocanhando 55% da renda nacional, enquanto a fatia dos mais pobres é de 12%, em “extrema e persistente desigualdade”, como disse o economista Thomas Piketty. Não é um descaramentoexistirem milhares de crianças dormindo sob as marquises de nossas principais cidades? E termos um modelo econômico que deixa mais de 13 milhões de brasileiro(a)s adultos sofrendo o flagelo do desemprego? Não escandaliza um país com tanto potencial ser a terra dos sem-teto, dos sem-terra, dos sem-escola de qualidade, dos sem-direitos elementares à vida digna?

Não é uma indecorosidade a ausência de políticas básicas, condenando quase 50% dos domicílios, em pleno 2017, a não ter rede de água e esgoto? No primeiro semestre deste ano, o governo temerário investiu 69% menos no saneamento básico que no mesmo período do ano passado. Agregue-se a isso o fato vergonhoso de 60% das cidades vazarem seu lixo a céu aberto, contaminando o solo e as águas e gerando doenças de todo o tipo – que atingem sobretudo os mais pobres de seus habitantes.

Há cupidez nos lucros extraordinários e indecentes dos bancos e dos grandes rentistas, para quem a crise jamais chega. E na injustiça tributária que faz com que quem recebe dois salários mínimos comprometa 53% da sua renda com pagamento de impostos, enquanto quem ganha 30 salários ou mais compromete 29%.

As colunas sociais retratam a dissipação de milhões da casta privilegiada em seus banquetes e convescotes, com recursos muitas vezes originários dos fundos públicos e da sonegação, pelos quais não há zelo, e sim voracidade. A luxúria norteia os que estão a léguas de distância da “austeridade moral” pregada pelo papa Francisco, ao condenar o “apego ao dinheiro, às mansões, aos trajes refinados, aos carros de luxo”.

É uma torpeza a movimentação atual de tacanhos que querem tirar do mestre Paulo Freire (1921-1997) o título de “patrono da educação brasileira”. A ignorância perdeu a modéstia! É um despudor defender uma escola sem pensamento crítico, disfarçada de “Escola Sem Partido”.

Por fim, mas não por último, aí está a sem-vergonhice de cada dia: compra de votos para parar investigação, negação de evidências de corrupção, proteção aos da corporação. Descarado e indecente movimento para “estancar a sangria” do desvendamento da roubalheira que, além de histórica, parece ser eterna.

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