Se aceitarmos os critérios do ilustre senador, vamos chegar à conclusão de que não só o Brasil, como a totalidade dos países do Ocidente, passou-se para o outro lado, sem se dar conta do que estava ocorrendo. Éramos todos socialistas e não sabíamos.
Senão vejamos. Apesar das políticas soi-disant liberais e antiestatizantes praticadas pela maioria dos governos ocidentais, a participação dos gastos públicos no dispêndio agregado cresceu consideravelmente na década de 70, superando as marcas, já elevadas, registradas nos anos 50 e 60. Na Alemanha Ocidental da Economia Social de Mercado, a participação dos gastos públicos nos gastos totais foi, em média, de 44% no período que vai de 1974 a 1982. Na Grã-Bretanha, esta cifra atingiu 44,5%, na França 41,6%, na Itália 43,1%, nos Estados Unidos 35,1% e no Canadá 39,40%. Os dados mencionados acima são de fácil acesso. Basta compulsar com competência os relatórios da OCDE. O senador Campos não poderia, a qualquer título, justificar a omissão dessas informações numa palestra pública, sob pena de estar destilando pura “ideologia” e armando jogo de palavras.
Estamos curiosos para saber qual seria a reação dos economistas da Faria Lima diante dessa burla escandalosa e grosseira dos cânones de procedimento científico. Os sábios da Crematística vêm reclamando seguidamente a adoção de posturas mais “científicas” e menos “ideológicas” no debate sobre a política econômica. Nada haveria de reprovável nisso, não fosse a flagrante contradição entre as palavras e as atitudes, entre o gesto e a intenção. Mas deixemos nossos pequenos sabichões entregues às suas grandes contradições. O grande Campos era coerente em suas omissões, porque persistente em seus propósitos. Vendia suas idéias, a bon marché, neste país onde são precárias as defesas do consumidor. Declarar guerra à intervenção do Estado na economia é uma forma cômoda de evitar uma análise mais circunstanciada das seguidas crises estruturais que atravessam as economias contemporâneas. Só o caos ideológico em que mergulhou o pensamento conservador pode explicar a identificação entre intervenção estatal e estatização. Ou entre estatização e planejamento.
Os anos da ditadura brasileira são o exemplo acabado de como a estatização nasce, exatamente, da falta de planejamento. A intervenção do Estado foi desordenada, casuística e, por isso mesmo, incontrolável. Esse “padrão” absurdo de interferência estatal na economia banqueteou-se no rega-bofes autoritário do regime, sem que o liberalismo do senador Campos se tenha manifestado sequer através da eructação. A ignorância cevada no obscurantismo e na literatura de segunda classe incentivou a ideia de que há uma oposição irredutível entre planejamento e democracia. Qualquer cidadão medianamente informado – e o senador Roberto Campos está acima desta categoria – sabe que um dos debates mais importantes deste século tratou do problema de como submeter a inevitável intervenção do Estado ao controle democrático. Estão aí as contribuições de Karl Mannheim, Schumpeter, Keynes e, mais recentemente, de Norberto Bobbio, Claus Offe, Herbert Marcuse e outros menos votados. Só figuras antediluvianas como Hayek e Milton Friedman acreditam nas funções alocativas do “livre-mercado”.
Essa metafísica do mercado se torna ainda mais ridícula quando confrontada com uma situação de crise estrutural, em que os preços sinalizam na direção contrária àquela desejável para a reconstrução da economia. Basta olhar o que está acontecendo, hoje, no Brasil e no mundo.
Eugênio Gudin passou boa parte de sua vida pregando contra a irracionalidade dos nacionalistas, ou comuno-nacionalistas, que pretendiam impor restrições ao capital estrangeiro ou que advogavam medidas intervencionistas para promover o desenvolvimento do País. O liberalismo à brasileira sempre combinou a rejeição (de todos os liberais) às intromissões da política na economia com uma profunda e dissimulada desconfiança na capacidade local de alcançar por conta própria as conquistas da sociedade industrial e seus padrões modernos de convivência.
Também neste capítulo, a atualidade de Gudin é notável. É a recorrência do tema da abertura comercial, do estímulo à entrada do capital estrangeiro, das ineficiências da indústria nacional que deve ser eliminada através da maior exposição à concorrência externa.
Agora, outra vez, a vulgata do pensamento dominante proclama a queda das fronteiras, a internacionalização dos mercados, os formidáveis movimentos de capitais. Isto, como o demonstra a obra de Gudin, não tem nada de novo. Vem de longa data a atitude basbaque da fração majoritária das camadas dominantes, da classe média para cima, com o que vem de fora para dentro. Os endinheirados, os letrados e os bem-postos na vida cultivam o cosmopolitismo avant la lettre, o que, na realidade, expressa uma secular e singular repugnância pelas condições reais do País, especialmente pelas condições miseráveis das classes subalternas.
Apesar disso, nos 50 anos que terminaram no início da década de 1980, a economia brasileira cresceu de forma acelerada e sofreu notáveis transformações, transitando do modelo primário exportador para a etapa industrial. O ethos do desenvolvimento nasceu da percepção – das camadas empresariais nascentes, do estamento burocrático-militar, de algumas lideranças intelectuais e do proletariado em formação – de que o objetivo de aproximar o País das formas de produção e de convivência não poderia ser alcançado através da simples operação das forças naturais do mercado.
É inteiramente falso, no entanto, atribuir um papel hegemônico a estas forças ditas progressistas na definição dos rumos do desenvolvimento. O projeto de industrialização foi sendo construído através de alianças políticas, regionais e de classe, que não só atraíram os interesses mais retrógrados e reacionários para o bloco desenvolvimentista, mas também selaram compromissos com as forças reais do internacionalismo capitalista.
Algumas características mais marcantes do desenvolvimento brasileiro decorreram da repactuação continuada desse compromisso: a espantosa persistência da estrutura agrária, a reprodução e ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade, o patrimonialismo da empresa industrial, o rentismo do sistema bancário, a eterna revolta contra o pagamento de impostos por parte dos endinheirados. Daí a dependência do financiamento externo, a desordem financeira do Estado, o protecionismo excessivo, a passividade tecnológica, o atraso organizacional, a posição subordinada da grande empresa privada nacional e o crescimento desmesurado do estatismo.
Durante 50 anos de industrialização acelerada, particularmente no pós-guerra até a crise da dívida externa em 1982, esse compromisso foi sendo continuamente renovado, apesar dos sucessivos conflitos entre os grupos dominantes, sempre acompanhados de agudas crises políticas. O fiador desse pacto instável foi a manutenção, ao longo de muitas décadas, de elevadas taxas de crescimento da economia.
A desorganização dos anos 80 não deve ser interpretada como uma crise que ocorre apenas no interior desse arranjo oligárquico. Desta vez, apesar das aparências, o estrago foi maior. Por um lado, caducou o consenso das camadas dominantes em torno do objetivo comum do desenvolvimento e, de outro, aumentaram as pressões das classes subalternas pelo reconhecimento integral de seus direitos políticos, sociais e econômicos.
Não é por outra razão que o ideário do liberalismo se transformou, outra vez, na força ideológica dominante. Diante da dificuldade de se reconstituir em novas bases um objetivo compartilhado, do visível enfraquecimento financeiro e da capacidade coordenadora do Estado, o liberalismo ressurge. Reaparece como a expressão imaginária e mágica do reconhecimento do interesse particular de cada grupo no interior das camadas dominantes e, ao mesmo tempo, como força política destinada a bloquear o avanço das classes subordinadas na conquista dos seus direitos.
O que vemos é a reiteração da crença no naturalismo do mercado, na rejeição da política, no cosmopolitismo. As possibilidades de crescimento estão todas depositadas no recuo do Estado, no ímpeto empreendedor do setor privado e, antes de mais nada, na força criadora do investimento estrangeiro. Roberto Campos parece ter razão quando diz que, finalmente, Gudin venceu. Ninguém sabe quanto tempo vai durar essa vitória.
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