segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O que o golpe de Fujimori em 1992 ensina ao Brasil de 2020

Há 28 anos, em abril de 1992, o então presidente Alberto Fujimori ― eleito dois anos antes como outsider que prometia lutar contra o establishment político ― surpreendeu os peruanos com uma transmissão em cadeia nacional às 22h30 da noite. Analisou a situação do país e reclamou da “velha política”, da atitude obstrucionista do legislativo controlado pela oposição e do judiciário ― grupos que, ele alertava, se uniam para impedir a transformação do país e o êxito de sua gestão. Reclamou do “parlamentarismo anti-nacional” contaminado pelos “vícios do caciquismo e clientelismo”. 

A justiça politizada e corrupta, segundo ele, era responsável pela “inexplicável liberação” de narcotraficantes e terroristas, que desestabilizaram o país e impossibilitaram a construção de uma “democracia real.” Fez uma pausa para tomar um gole d'água e anunciou calmamente que era necessário assumir uma “atitude excepcional” para promover a reconstrução nacional, que envolvia a suspensão do Congresso e da Constituição, a “reorganização total” do judiciário, do Ministério Público e da Controladoria Geral. 

Tanques cercaram o parlamento, e numerosos jornalistas e deputados foram presos ou sequestrados, entre eles os presidentes da Câmara e do Senado. Em momento dramático, o apresentador da Rádio Antena, emissora peruana, relatou ao vivo a entrada de policiais no estúdio e, antes de o sinal ser cortado, ainda chegou a pedir à população que se manifestasse contra o golpe de Estado. Em vão. 

Tinha início, naquele momento, a ditadura, marcada por violações sistemáticas de direitos humanos, censura aos jornais, um judiciário controlado pelo presidente, corrupção sistemática, isolamento internacional e um líder que tentou se perpetuar no poder. Fujimori apostou tudo e ganhou: a maioria da população apoiou o golpe, e sua taxa de aprovação inicialmente subiu quando ele começou a governar por decreto. Apesar de sua condenação e prisão em 2008 por violações de direitos humanos, uma pesquisa de opinião em 2012 revelou que 47% dos peruanos acreditava que a ruptura constitucional foi necessária diante das ameaças que o Peru encarava naquela época ― sobretudo a atuação dos grupos guerrilheiros Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) e Sendero Luminoso. 

Não surpreende, portanto, que o golpe de Fujimori seja objeto de inspiração e admiração para líderes políticos com ambições autoritárias até hoje ― enquanto a maioria dos presidentes autoritários, como Chávez, Ortega e Erdogan, precisam de anos no poder para erodir a democracia, o peruano o conseguiu em apenas dois. 



O caso do Peru mostra que a resistência popular contra golpes é menor quando existe uma ameaça, real ou imaginária, assustadora para a população a ponto de ela estar disposta a abrir mão dos seus direitos políticos para livrar-se dela. O presidente peruano soube magistralmente alimentar o medo do caos para poder justificar o golpe como medida estabilizadora. 

A arte do golpismo, portanto, consiste em convencer a maioria da população de que alguma ameaça é tão séria que medidas excepcionais ― leia-se, uma ruptura constitucional ― torna-se necessária, mesmo quando, como no caso peruano, há pouca evidência de que a dissolução do Congresso facilitou o combate contra o terrorismo. Pelo contrário. Por meio do golpe, Fujimori destruiu sua maior fonte de poder no combate às guerrilhas: sua legitimidade constitucional. Como o golpe nunca pode ser visto como uma iniciativa motivada pelo desejo de concentrar o poder, mas sempre como uma reação a algum problema supostamente grave, o primeiro passo de qualquer líder autoritário é a invenção e a promoção de ameaças. 

Ao redor do mundo, líderes com ambições autoritárias adotam a mesma estratégia. Nos Estados Unidos, Donald Trump não se cansa de evocar as ameaças da China, do Islã e dos imigrantes. Na Hungria, Viktor Orbán há anos promove o medo na população em relação aos imigrantes, à União Europeia, aos gays e a George Soros. Na Venezuela, Chávez sempre alertava para a ameaça imperialista. No Brasil, o presidente Bolsonaro induz os seguidores a protestar contra as medidas de distanciamento social que, segundo ele, representam uma ameaça contra a liberdade, a economia ou mesmo a democracia. Por isso, os protestos contra as medidas de distanciamento social não são uma coincidência.

Pelo contrário, são produto de uma estratégia sofisticada de indução de medo constante e mobilização contra um inimigo ― os governadores, o STF, a China, a OMS e o comunismo, como recentemente escreveu o chanceler Ernesto Araújo. Ante qualquer desafio que surgir em um país ― a imigração, a mudança global do clima, o desemprego, a globalização, uma pandemia, o aprendiz de autoritário se perguntará como ele poderá transformar a dificuldade em algo realmente assustador para grande parte da população. 

A incitação da insegurança coletiva pela indução do medo é, portanto, tarefa básica de qualquer autoritário, para poder se projetar, no final das contas, como o salvador da pátria que protege a população das muitas ameaças, e justificar medidas excepcionais para supostamente defender o país. O maior medo de qualquer líder autoritário é ficar sem ameaça ou inimigo: sem circunstâncias excepcionais, não haverá apoio para medidas excepcionais. 

É por isso que a pandemia é uma grande oportunidade para muitos líderes com ambições autoritárias ao redor do mundo ― como na Hungria, onde o presidente aproveitou da crise sanitária para instaurar uma ditadura. Afinal, como Fujimori compreendeu há quase 30 anos, pessoas assustadas sentem mais necessidade de direção, proteção e ordem. Quando a população está profundamente insegura em relação ao futuro, tende a apoiar medidas que acredita, com ou sem razão, que a salvarão ― mesmo que isso signifique abrir mão dos seus direitos políticos.

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