segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O dia em que atendi um morto ao telefone

Esta é uma história real. Os eventos descritos aconteceram no Rio em 1976. Para não ferir suscetibilidades dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Mas, em respeito à História, o episódio está sendo relatado exatamente como aconteceu.

O aparelho de telefone tocou no fundo da redação. Na época, as redações eram quase inteiramente ocupadas por aparelhos de telefones. Um repórter atendeu e gritou, tapando o bocal:

— Quem tá fazendo o Funéreo?

Aqui é preciso explicar. Naquele tempo, todos os jornais publicavam uma coluna de falecimentos do dia. No matutino em questão, a seção era feita sempre pelo mesmo repórter, Astênio Rosário, um setorista de mortos anônimos. Ele ganhou o apelido de Funéreo. Por extensão, a coluna passou a chamar-se Funéreo também. Funéreo, o repórter, gostava de ser o responsável pelo Funéreo, a coluna. O problema é que, como todos nós, Funéreo também tirava férias. No caso, o repórter Funéreo. A coluna Funéreo nunca tirava férias. Alguém tinha que redigi-la na ausência do titular. O substituto, geralmente, era o estagiário mais inexperiente da equipe. Naquele momento, eu mesmo.

— Sou eu! — respondi.

Como já disse, alguém, atendendo ao telefone, tinha perguntado quem estava fazendo o Funéreo.

— Tem um morto aqui querendo falar contigo.


Imaginei que fosse piada. Um daqueles trotes que infernizavam a vida dos estagiários, do tipo “vá até a oficina pegar a calandra”. Ah, o leitor não conhece o trote da calandra? Outro dia eu explico. Agora, tenho que atender o telefonema de um morto.

— Aqui é o general Olímpio Cerqueira.

Gelei! Generais, em 1976, metiam medo. Aquele general tinha sido o meu morto principal do dia. Confesso que era um pouco relapso na minha tarefa funérea. Deveria frequentar velórios, pegar informações com a família do defunto. Mas eu fazia tudo burocraticamente. Ia na secretaria do cemitério, pedia para ver os atestados de óbito do dia, anotava os dados e estava pronta a coluna. Torcia para encontrar algum atestado com muitas informações para ter meu personagem principal. Era o caso do general. O atestado dizia até que a causa mortis fora um acidente no qual a vítima tinha perdido um dedo.

— O senhor me matou hoje.

— Mas um general Olímpio Cerqueira morreu mesmo. Eu li o atestado de óbito. Morreu num acidente de carro. Tinha 65 anos. O senhor deve ser um homônimo. O meu general tinha três filhos.

— Ainda os tenho.

— Era casado com uma dona Honorina.

— É a minha mulher, que o senhor enviuvou precipitadamente.

— Então, vai me desculpar, general, mas o senhor está enterrado no São João Batista.

—O que está enterrado é meu dedo amputado no acidente.

Alguns impropérios depois, entendi que o documento lido por mim não era um atestado de óbito, mas uma declaração de sepultamento parcial. Pois é, isso existe! No dia seguinte, o jornal publicou a única correção de toda a história do Funéreo: “Dado como morto na edição de ontem, o general Olímpio Cerqueira está vivo e passa bem.”

O saldo positivo é que eu fui deslocado de função. Passei a cobrir o cotidiano do Jardim Zoológico. Meu chefe me passou uma lição: com general não se brinca.
Artur Xexéo 

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