segunda-feira, 19 de outubro de 2020

As ondas, as ondas

Talvez não dê para vê-las no horizonte ou talvez muitas pessoas simplesmente tenham optado pela cegueira. Contudo, elas espreitam o Brasil despeitado que finge não existir pandemia. Nesse Brasil despeitado, o mal que aflige o mundo acabou como que por milagre e não haverá de voltar, porque, afinal, Deus é brasileiro independentemente da fé. As ondas, as ondas. "O mar, o mar", o livro de Iris Murdoch que li repetidas vezes na adolescência. Divago.


As ondas existem, como já era previsível no início do início. O vírus é novo, a pandemia é jovem — tem menos de dez meses, quiçá ainda não tenha aprendido a andar sem bambolear. Mas na cabeça de muitos nós estamos “no meio da pandemia”, tal qual se escuta por aí. Na cabeça de muitos já estamos no fim da pandemia porque a vacina está logo ali, e quando a vacina vier tudo se resolve porque é assim que acontece nos filmes sobre pandemias imaginárias. Na cabeça daqueles que lotam as praias e os bares sem o uso de máscaras, que se aglomeram com parentes pois todos estão tomando muito cuidado e não vai acontecer nada, ora, vão a festas ou organizam eles próprios tais eventos em ambientes fechados, pouco ventilados, quem é o vírus? Quem o vírus pensa que é? Somos todos imunes, estamos todos protegidos, nada nos atinge, quanta gente histérica a fazer birra com o resfriado alheio. Mortes? Ah, não vamos falar sobre isso. Que assunto mórbido, que pessoa amarga você é, como ousa tirar a alegria da liberdade recém-conquistada. Veja, fulano teve Covid e está super bem, já até voltou a trabalhar, o vizinho me contou. A sicrana então, teve foi nada, nem um espirrozinho. Estamos livres! Vamos viver a vida!

Mas, as ondas, as ondas. Elas aí estão. Na Europa, é possível enxergá-las com nitidez pois nesses países houve controle da epidemia, o número de casos caiu e o de mortes também. Logo, o recrudescimento é demasiado nítido. Por esse motivo, governos reagem com novas medidas restritivas. A França com seu toque de recolher entre as 21 horas e as 6 horas da manhã, algo feito apenas durante as duas guerras do século passado. Disso alguns fazem troça e perguntam, “mas será que o vírus só circula durante a noite?”. Acham muita graça e têm nas redes sociais a confirmação de que de fato saíram-se com uma tirada genial. Que lacrada fabulosa. Enquanto isso, pessoas morrem e as sequelas se amontoam. Encefalopatias, problemas vasculares, disfunções neurológicas, fibroses pulmonares.

Nos EUA, onde jamais houve um término da primeira onda antes que chegasse a segunda, agora se convive com o espectro da terceira.

Ainda assim, já foi determinado pelo presidente que o vírus é nada, ele o venceu. Pouco importa que tenha tido acesso a tratamentos que sequer foram aprovados pela agência de vigilância sanitária, a Food and Drug Administration. Importa menos ainda que esses tratamentos não estejam ao alcance da população. A economia não pode parar, as pessoas têm de aproveitar a vida, ninguém deve ser submisso ao vírus. Pouco a pouco os hospitais voltam a encher em várias localidades que, inclusive, trataram o vírus com o devido respeito. Mas, como ocorre no Brasil, quando as pessoas viram estatística — mais um caso de Covid-19, mais uma internação, mais um falecimento — elas são rapidamente esquecidas. A não ser, é claro, se forem parentes ou amigas de alguém. E as pessoas sempre são parentes ou amigas de alguém. Qualquer pessoa, inclusive aquelas que se julgam imbatíveis e que acreditam que as tragédias só atingem os outros.

Querendo ou não, as novas ondas haverão de afetar as economias. Não à toa, nessa semana das reuniões anuais do FMI e do Banco Mundial não se fala sobre outra coisa. Como ficarão os cenários à frente para a economia mundial? O que fazer com um mundo de dívidas, e como fazer em um mundo de dívidas? E a desigualdade, como vamos freá-la? Há alguma chance de freá-la?

“Existe hoje uma tendência a criticar e rebater de modo quase instintivo tudo o que soa inconveniente”. Esta frase está no primeiro parágrafo do décimo capítulo de "Ruptura", meu mais novo livro. De que trata o capítulo? Das quarentenas intermitentes. Das ondas, das ondas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário