Um membro de nossa “turma” de esporte e “brincadeiras” - reuniões dançantes nas quais podíamos chegar perto das moças pegando suas mãos, sopesando seus corpos e sentindo o seu hálito - fugira de casa!
Sabíamos de sua revolta aberta contra o “Pai” radical na obediência às convenções. Afinal, quem é que ia de bom grado à missa das naqueles domingos frios por puro catolicismo e não para pecaminosamente vislumbrar a namorada - então o grande e infinito amor de sua vida?
Era claro que o Carlinhos tentava sair do seu aprisionamento familiar. Fugiu para o Rio levando com ele os pagamentos em dinheiro da empresa na qual seu pai, um homem de prestígio esmagador, o havia empregado.
“Cometeu um enorme pecado”, disse o padre Geraldo na reunião para a qual nos convocou na sala de visita da igreja Senhor do Passos.
“Não, padre, desculpe...Ele usou um mecanismo bem conhecido”, disse o Dr. Freitas, psiquiatra amigo da família que, para escândalo dos círculos mais cultivados e ardorosamente católicos da cidade, falava muito num perigoso Dr. Freud.
“Ele rompeu”, prosseguiu o Dr. Freitas, “com os recalques. Ousou escapar da roda implacável do mecanismo que junta, nas suas correias, as regras de controle que devem valer para todos, com seus fabricantes e controladores - essas pessoas que, por isso mesmo, ficam maiores do que as leis. No processo, há uma luta entre normas institucionais e super-indivíduos ou pessoas. A mentira aparece como um valor e a desonestidade vira virtude. Corre-se o risco do suicídio - esse exagero de egoísmos rasos com altruísmos confusos. Esses crimes para dentro, como o assalto a coletividade. Disto resulta uma culpa que vaga pedindo punição, mas punir é também algo complexo pois exige admissão do erro. Algo complicado na nossa cidade.”
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Leis e desejos, regras gerais e interesses particulares. A fuga do companheiro colocava o absurdo: todos temos apenas um destino, mas o nosso coração encerra muitas vidas e possibilidades. Inúmeras fugas, a maioria fugaz e fantasiosa. Como conciliar egoísmo e altruísmo; a parte que nos individualiza, com o todo que nos persegue até o fim do mundo.
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Quando o fujão voltou, nós o cercamos com perguntas. Viajou para o Rio de noite, hospedou-se no Hotel Serrado, comeu nos melhores restaurantes e “pegou algumas mulheres”, pois, naqueles tempos, “pegavam-se (imagine só...) mulheres”. Mas logo entrou num regime de angustia.
Disse sem rodeios: “Quanto mais meu pai c... regras, mais ele as descumpria. Chegamos num ponto onde não se distinguia mais o legal do ilegal, pois todos agiam de acordo com as lei, mas seguindo seus interesses. Lá em casa fazíamos interpretações de interpretações de interpretações. Elas ficaram maiores que os fatos e então eu criei um arremedo de morte - fugi de casa.
“Entendi”, continuou o fugitivo, “que o ético não é apenas o certo, é o que está dentro dos nossos corações. Podemos descumprir e dispensar as regras, mas não podemos arrancar do nosso peito o nosso coração”. “Agora eu entendo”, disse o menino perdido e jamais achado, “o problema do Pai é que ele imagina que o mundo pode ser resolvido por leis quando, de fato, as leis são aplicadas, interpretadas e limitadas por pessoas. Dentro de uma fatal e abençoada liberdade que engendra o mecanismo. Pois, quanto mais leis, mais se reforçam e se instrumentam as amizades. E quanto mais arranjos pessoais, mais leis e mais hipocrisia e má-fé”.
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P.S.: Sei que, exceto pela mera coincidência, isso nada tem a ver com a chamada crise brasileira que, por ignorar o mecanismo, repete-se e reitera-se como uma indecorosa rotina.
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