quarta-feira, 31 de maio de 2017

Cotidiano de exceção

Cartaz da edição brasileira do livro 'Sobre a tirania' 
O sobressalto encarnou-se nos dias. Não é mais inerente ao cotidiano, mas o próprio cotidiano. Temos vivido no Brasil (e acredito que em boa parte do mundo), aos espasmos. Um espasmo, outro espasmo, mais um espasmo. A cada noite, dormimos (ou tentamos dormir) sem saber o que acontecerá no país. Ou mesmo com qual presidente o dia terminará. Não há mais como imaginar o dia de amanhã. Às vezes, não dá para imaginar a hora seguinte. O sobressalto tece a experiência – tanto a coletiva, a maneira como estamos com os outros, como a individual, nosso modo de estar consigo mesmos. Acusamos o impacto nas nossas vísceras, o sentimos na ansiedade misturada aos goles de café, mas não somos capazes de dimensionar. É assim que a exceção vai se infiltrando nas horas – e também nas almas. E é assim também que ela mina a nossa resistência. Como persistir, então?

O controle é, desde sempre, uma ilusão. Mas em momentos como este, estamos além da possibilidade de ilusão. Se isso não é novo na história da humanidade, e obviamente não é, há algo que acentua e amplia essa percepção da realidade, que é a vida conectada pela internet, em que segundo a segundo algo salta na tela para contar de um sobressalto, sobressaltando. E, sobressaltados, replicamos o que nos sobressalta, sobressaltando outros. E, assim, criamos um mundo de gente que suspende a respiração – e às vezes também o pensamento.

Em épocas como esta, as armadilhas são várias. E talvez a maior delas esteja na reação. Há uma diferença entre reagir por reflexão – e reagir por reflexo. A reação por reflexo obedece à mesma lógica de alguém que se coça ao sentir a picada de um pernilongo. Assemelha-se a uma resposta sem pensamento, rápida como um “curtir” das redes sociais. É difícil alcançar qual é o efeito de uma reação generalizada por reflexo. Mas é importante perceber que, neste momento, há parcelas da sociedade que disputam o poder – ou lutam para mantê-lo – que reagem com pensamento e reagem com planejamento. E parte do seu pensamento e do seu planejamento é contar com o fato de que a maioria seguirá reagindo por reflexo.
Resistir ao autoritarismo é deixar de reagir por reflexo – e passar a reagir por reflexão
No tempo da aceleração, o que se infiltra nas horas é esta sensação de anormalidade que não passa. Convertida num presente contínuo, é como se o dia seguinte nunca chegasse. O risco é que, para recuperar a “normalidade”, qualquer normalidade, se aceite o inaceitável. Quanto maior for o anseio por “normalidade”, mesmo que ilusória, mais as pessoas e grupos tornam-se dispostos a conceder e a perder direitos. E é aí que mora o perigo.

Resistir neste momento é também deixar de reagir por reflexo – e passar a reagir a partir da reflexão. Quando tudo parece caótico, quando tudo fica meio misturado e parecido, é preciso olhar para os fatos. Olhar para os fatos com toda a atenção. São eles que nos apontam onde estão as verdades e nos ajudam a enxergar onde está a manipulação, assim como a falsificação. O pensamento é ainda a melhor forma de resistência.

Há um livro que pode nos ajudar a pensar sobre este momento. Sobre a tirania – Vinte lições do século XX para o presente será lançado pela Companhia das Letras no início de junho. Perturbado pela chocante eleição de Donald Trump, Timothy Snyder, professor de história da universidade de Yale, postou um texto no Facebook que se tornou viral. Ele começava assim: “Os americanos não são mais sábios que os europeus, que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo. Nossa única vantagem é ser capaz de aprender com a experiência deles”. O texto foi ampliado e se tornou um livro best-seller nos Estados Unidos, já convertido para várias línguas. Agora chega ao Brasil, traduzido por Donaldson M. Garschagen.

Escrito para os americanos, o livro diz muito também para os brasileiros, já que as novas máscaras do velho autoritarismo são tão globalizadas como o mundo que as gesta. A seguir, faço uma conversa minha com este livro, a partir da experiência de viver no Brasil o que chamo de “cotidiano de exceção”.
Leia mais o artigo de Eliane Brum

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